sábado, 27 de abril de 2013

Uma fatia de queijo sem veneno, por favor.


— Câncer!
O homem empalideceu de imediato enquanto seu corpo era tomado por uma onda de tremor, quase uma convulsão a estampar em seu rosto retesado o medo e o espanto que o tomara por completo. Podia-se ver à luz artificial de seu quarto as suas pupilas, antes dilatadas, cerrarem-se no instante em que aquela palavra percorrera o ar empoeirado e penetrara seus ouvidos. Afastando-se com três passos curtos para trás, esbarrou-se na cadeira de mogno recostada num canto ao lado da porta, desabando-se sobre ela como se seu corpo não tivesse mais vida, recostando seu dorso pesadamente no seu encosto, quase o arrancando. Mas os seus olhos compenetrados e a sua boca entreaberta a soltar um chiado quase inaudível, como se não soubesse exatamente quais palavras pronunciar diante de sua própria perplexidade, limitando-se apenas a chiar, denunciava a vida que ainda existia naquele corpo repentinamente gélido e trêmulo. A verdade é que não sabia exatamente o que dizer ou mesmo se deveria se aventurar a pelo menos balbuciar algo. Não sabia nem mesmo se teria perdido a sanidade.
— Câncer! É exatamente essa palavra — repetiu o pequeno rato no canto nu daquele quarto empoeirado na Rua Sete de Setembro n° 30, na cidade de Belo Horizonte, fazendo seus bigodes compridos balançarem no momento em que pronunciava aquelas palavras de forma exasperada e com um olhar agressivo e ao mesmo tempo tomado pelo medo, enquanto seu diminuto coração, já bastante ligeiro naturalmente, se mostrava extremamente acelerado por causa da perseguição que antecedera aquele momento.
Encontravam-se os dois, homem e rato, em cantos opostos daquele cômodo como boxeadores em um ringue esperando o soar do gongo para reiniciar a troca de jabs e diretos; dois gladiadores a se entreolhar, cada um a seu modo, arfando todo o ar possível, a tomar o fôlego que tanto lhes fazia falta, um pelo esforço depreendido e o outro recuperando o ar que lhe havia sido tomado após a estupefação que lhe causara o acontecido.
O homem de meia idade ainda segurava a vassoura como se esta fosse uma espada ou uma lança diante de um grande inimigo que o sobressaia em coragem naquele momento; coragem esta, que assumira diante da morte iminente, uma vez que, por mais trêmulo e empalidecido que estivesse aquele homem, a força bruta lhe dava vantagem sobre o corpo ágil, porém frágil daquela criaturinha.
Por que fica aí sentado a me olhar enquanto segura essa porcaria de vassoura? — esbravejou o rato. Por que não me desfere logo esse golpe e acaba logo com minha vida miserável? Fica aí com esse olhar de espanto, essa boca aberta e essa cara esbranquiçada e não toma nenhuma iniciativa. Você me enoja!
O homem, tentando recobrar os sentidos, reorganizava seus pensamentos e, ainda trêmulo e tomado pelo medo, começou a balbuciar sua resposta, inicialmente apenas uma variação do chiado que emitia até então, e, aos poucos, palavras audíveis e mais palpáveis:
— N... nã... não tenho a mínima idéia do que possa estar acontecendo aqui. Como você pode falar?
— Da mesma maneira que você — retrucou o rato. E aproveito a oportunidade para repetir que é para mim e para o restante desse planeta maculado pela sua presença, um câncer que deve ser extirpado.
O interlocutor daquela criatura eloqüente agora voltava a tomar a sua cor habitual, mas ainda permanecia trêmulo e não ousava fazer qualquer movimento. Tinha ainda em suas mãos aquela vassoura, pela qual escorria o suor frio que transpirava demasia.
— Não há um só dia que não o vejo sentado em frente àquela televisão em sua sala de estar a rir das babaquices que lhe jogam na cara — continuou o rato. Parece-me tão absorto em sua ignorância que não se apercebe o quão idiota e sem sentido é a vida que leva. Tem em uma das mãos uma vassoura, pronto para me matar, como se sua vida fosse tão mais valiosa que a minha, mas a verdade é que você é fraco. Moldaram o mundo a seu modo para sobreviverem. Não vê a fraqueza escondida por trás disso tudo? Não é capaz de viver por si só; tem que destruir a vida de tantos para se sentir altivo e dono de si mesmo. Câncer! É isso que você é.
Confuso e consternado com as verdades que eram vomitadas por aquele pequeno rato no canto de seu quarto frio e empoeirado, tentava organizar em sua mente perturbada uma resposta à altura:
— Você diz que se enoja de mim? Você anda sobre minhas fezes e come os restos daquilo que eu não mais quero. Como pode falar em fraqueza se rasteja pelos cantos e bueiros, imundo e portador de tantas doenças? Sua presença é motivo de asco para todos, asco esse, menor apenas do que o ódio que nutrem por você.
— Doença! Uma palavra forte! — disse o rato. Não se esqueça que a doença aqui é você. Já deve ter ouvido pela boca de um de seus demagogos irmãos em espécie que vocês próprios são a doença do mundo. Certamente ouviu que é a única espécie viva que se extinta só traria benefícios ao planeta. Mata-me logo. Acabe com meu sofrimento.
— E agora, por que quer morrer?
— Isso não é da sua conta. Apenas faça o que eu digo.
— Não. Eu insisto em saber.
— Sei que faço parte de um todo. Deixarei de existir, mas o meu corpo continuará por aqui, fará parte deste mundo por toda a eternidade. Tenho consciência de minhas fraquezas e sei que a dor inquietante que sinto ao ver toda a natureza se esvair diante de sua ignorância, com a sua tão aclamada modernidade e racionalidade, não passará de modo algum, e cheguei à conclusão de que não fará muita diferença se eu viver ou morrer; vocês continuarão aí até destruir tudo e sucumbirem sob seus próprios escombros. Eu já vivi muito e vi coisas que me fazem arrepiar todos os meus pelos pela simples lembrança. Anda! Mata-me logo. Acabe logo com isso.
O homem soltou a vassoura, levantou-se, e dando de ombros à criaturinha, saiu lentamente do quarto, deixando para trás um pequeno rato com os olhos entristecidos e a voz embargada a se apoiar sobre as duas patas traseiras com as mãos juntas e os bigodes arqueados. A dor do homem e do rato agora eram equivalentes.
Daquele dia em diante, conviveram naquela casa a se ignorarem como se nada houvesse acontecido. O rato, cada dia mais velho, a vida para ele passava mais depressa; o homem, cada dia mais soturno e distante, a vida para ele passava lenta e desgraçadamente dolorosa.
Como que impelidos por uma força maior e sobrenatural, encontraram-se algumas semanas após, numa tarde de julho fria e estranhamente calma, cada um a seu canto do ringue e saborearam um pedaço fresco de queijo. Não se entreolharam nem mesmo fizeram menção à presença um do outro. Naquela noite morreram, cada um a seu canto do quarto empoeirado, cada um envenenado por sua própria vida estranhamente dolorosa.

domingo, 21 de abril de 2013

Fúlvio e Martha

Martha: Firma-te de pé, homem.

Fúlvio: Onde estou?

Martha: Obedeça-me e em breve estarás no paraíso.

Fúlvio: Afasta-te de mim.

Martha: Ouça-me. Faça o que vos digo e viverás eternamente em doces sonhos.

Fúlvio: Não creio em tuas palavras.

Martha: Crer ou não crer, não é esta a questão.

Fúlvio: Sinto lascívia em teu tom de voz.

Marha: Tuas palavras são realmente belas, mas não estão no roteiro.

Fúlvio: Belas! Desonra-me tocar-te uma vez mais. Pois não há em meu corpo castigado uma só célula que nutra por ti qualquer afeição.

Martha: Heresia! Ontem mesmo juraste amor eterno.

Fúlvio: Crê tu na palavra de um bêbado?

Martha: Hei de tomá-la como verdadeira, onde e como me convir.

Fúlvio: Onde estou?

Martha: Continuas a pronunciar palavras que definitivamente não fazem parte do roteiro.

Fúlvio: Por que falas em roteiro?

Martha: Por tudo que há de mais sagrado, por que tantas perguntas?

Fúlvio: Esta é tua mão?

Martha: O que achas?

Fúlvio: Quão ressequidas estão elas! E este cheiro no ar? Seria flor de defunto?

Martha: Não vos entendo...

Fúlvio: Agora tu não me entendes!

Martha: Queres fazer-me derramar lágrimas de tristeza em dia em que a priori deveria ser carregado apenas de imensa alegria?

Fúlvio: Não há luz!

Martha: Não respondes.

Fúlvio: Não me recordo nem mesmo do momento em que me coloquei de pé.

Martha: Não haveria de ser isto um diálogo?

Fúlvio: Diálogo?! Queres mesmo dialogar? Então, diga-me onde estou e por que não consigo enxergar um palmo diante de mim?

Martha: Tua volúpia, tua paixão incontida, o veneno que colocaste em minha mente na noite anterior. O que tens a me dizer sobre eles?

Fúlvio: Volúpia, paixão, veneno! Realmente tu me confundes.

Martha: Voltemos ao roteiro.

Fúlvio: Que diabos é esse tal roteiro?

Martha: Cala-te herege! Não pronuncies tal palavra.

Fúlvio: Diabos?

Martha: Cala-te. Mais uma vez eu vos falo.

Fúlvio: Diabos?

Martha: Tua alma arderá nas chamas da eternidade se continuares a pronunciá-la.

Fúlvio: Arderás a meu lado?

Martha: O sarcasmo não vos salvará.

Fúlvio: Salvar-me? Salvar-me de quê, mulher?

Martha: Creio que eu tenha usado as palavras erradas. Perdoa-me!

Fúlvio: Perdoar-te? Minha cabeça dói. Sinceramente, não vos entendo. Não tenho a mínima idéia de onde eu possa estar. Não sei nem ao menos como cheguei aqui... E por que tamanha escuridão?

Martha: Silêncio. Tais palavras não estão...

Fúlvio: Já sei. Tais palavras não estão no roteiro.

Martha: ...

Fúlvio: Por que não soltas minha mão?

Martha: ...

Fúlvio: Maldita ressaca!

Martha: Silêncio!

Padre: Fúlvio Epicureus, aceitas Martha Turca Fırsatçı como sua legítima esposa?

Coronel Firsatçi: Ele aceita!

E fez-se a luz...

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Antagônico ser soturno



Projeta-se a sombra inquietante e soturna
no semblante ferido de sua alma agoniada;
aninha-se furtiva nos pólos norte e sul de seu cérebro entorpecido
pela luxúria e pelos pecados que sua vida recobrem.

A dor a qual se entrega lhe traz prazer e alegria a sua mente lamuriosa,
escarnecendo-se de sua fraqueza,
ao mesmo tempo humana e divina.

Faz-se carne apodrecida nos cantos de alguma praça,
doutor de seus próprios ensinamentos,
de suas convicções anacrônicas, fétidas e amargas
como o fel que escorre de sua boca ao pronunciar seus discursos;
palavras soltas ao vento, carregadas de seus propósitos macabros.

Faz da noite uma amiga e confidente,
das amarguras que tenta e consegue infringir no coração dos fracos.
Pela discórdia se faz altivo,
vangloriando-se do monstro que cultiva em seu ser.

Por que sofre e faz sofrer,
se a mácula de seus dias passados
é eterno estigma de seus dias vindouros?

Se a destruição das vidas alheias lhe é tão prazeroso,
por que não vive a sua própria sobre os crânios de suas vítimas,
ao invés de chorar lágrimas de vidro no vazio de seu quarto?

Se mata aquele que elegera seu inimigo,
por que não se banqueteia de sua carne e não se farta de seu sangue?
É o falso antagonismo de caráter que lhe traz tamanha credulidade?
Antagônico.

O azul do céu em contraponto à terra ressequida do deserto é uma analogia perfeita:
em seus olhos a doçura cativante dos anjos;
em suas mãos o sangue dos justos e não justos.

Aqueles que com você caminham
são os mesmos que têm à mesa com você o último cálice;
o arsênico desce-lhes a garganta, quente e corrosivo,
como sua saliva satânica.

Afasta de mim o seu cálice imundo;
durma nos montes a oeste de minha tenda enquanto monto guarda.
Não quero a sua companhia.

Haverá o dia em que o seu sorriso,
corrompido pela sua vida desregrada,
de opulências e futilidades,
de dor e de agonia,
não mais tocará o coração dos fracos.


Mais uma vez tentanto e mais uma vez, provavelmente fazendo algo meio porco, no melhor sentido da palavra, afinal, poemas, poesias e afins não são mesmo o meu forte.