— Câncer!
O homem
empalideceu de imediato enquanto seu corpo era tomado por uma onda de tremor,
quase uma convulsão a estampar em seu rosto retesado o medo e o espanto que o
tomara por completo. Podia-se ver à luz artificial de seu quarto as suas
pupilas, antes dilatadas, cerrarem-se no instante em que aquela palavra
percorrera o ar empoeirado e penetrara seus ouvidos. Afastando-se com três
passos curtos para trás, esbarrou-se na cadeira de mogno recostada num canto ao
lado da porta, desabando-se sobre ela como se seu corpo não tivesse mais vida,
recostando seu dorso pesadamente no seu encosto, quase o arrancando. Mas os
seus olhos compenetrados e a sua boca entreaberta a soltar um chiado quase
inaudível, como se não soubesse exatamente quais palavras pronunciar diante de
sua própria perplexidade, limitando-se apenas a chiar, denunciava a vida que
ainda existia naquele corpo repentinamente gélido e trêmulo. A verdade é que
não sabia exatamente o que dizer ou mesmo se deveria se aventurar a pelo menos
balbuciar algo. Não sabia nem mesmo se teria perdido a sanidade.
— Câncer! É
exatamente essa palavra — repetiu o pequeno rato no canto nu daquele quarto
empoeirado na Rua Sete de Setembro n° 30, na cidade de Belo Horizonte, fazendo
seus bigodes compridos balançarem no momento em que pronunciava aquelas
palavras de forma exasperada e com um olhar agressivo e ao mesmo tempo tomado
pelo medo, enquanto seu diminuto coração, já bastante ligeiro naturalmente, se
mostrava extremamente acelerado por causa da perseguição que antecedera aquele
momento.
Encontravam-se
os dois, homem e rato, em cantos opostos daquele cômodo como boxeadores em um
ringue esperando o soar do gongo para reiniciar a troca de jabs e diretos; dois
gladiadores a se entreolhar, cada um a seu modo, arfando todo o ar possível, a
tomar o fôlego que tanto lhes fazia falta, um pelo esforço depreendido e o
outro recuperando o ar que lhe havia sido tomado após a estupefação que lhe
causara o acontecido.
O homem de
meia idade ainda segurava a vassoura como se esta fosse uma espada ou uma lança
diante de um grande inimigo que o sobressaia em coragem naquele momento;
coragem esta, que assumira diante da morte iminente, uma vez que, por mais
trêmulo e empalidecido que estivesse aquele homem, a força bruta lhe dava
vantagem sobre o corpo ágil, porém frágil daquela criaturinha.
Por que fica
aí sentado a me olhar enquanto segura essa porcaria de vassoura? — esbravejou
o rato. Por que não me desfere logo esse golpe e acaba logo com minha vida
miserável? Fica aí com esse olhar de espanto, essa boca aberta e essa cara
esbranquiçada e não toma nenhuma iniciativa. Você me enoja!
O homem,
tentando recobrar os sentidos, reorganizava seus pensamentos e, ainda trêmulo e
tomado pelo medo, começou a balbuciar sua resposta, inicialmente apenas uma
variação do chiado que emitia até então, e, aos poucos, palavras audíveis e
mais palpáveis:
— N... nã...
não tenho a mínima idéia do que possa estar acontecendo aqui. Como você pode
falar?
— Da mesma
maneira que você — retrucou o rato. E aproveito a oportunidade para repetir que
é para mim e para o restante desse planeta maculado pela sua presença, um
câncer que deve ser extirpado.
O interlocutor
daquela criatura eloqüente agora voltava a tomar a sua cor habitual, mas ainda
permanecia trêmulo e não ousava fazer qualquer movimento. Tinha ainda em suas
mãos aquela vassoura, pela qual escorria o suor frio que transpirava demasia.
— Não há um só
dia que não o vejo sentado em frente àquela televisão em sua sala de estar a
rir das babaquices que lhe jogam na cara — continuou o rato. Parece-me tão
absorto em sua ignorância que não se apercebe o quão idiota e sem sentido é a
vida que leva. Tem em uma das mãos uma vassoura, pronto para me matar, como se
sua vida fosse tão mais valiosa que a minha, mas a verdade é que você é fraco. Moldaram
o mundo a seu modo para sobreviverem. Não vê a fraqueza escondida por trás
disso tudo? Não é capaz de viver por si só; tem que destruir a vida de tantos
para se sentir altivo e dono de si mesmo. Câncer! É isso que você é.
Confuso e
consternado com as verdades que eram vomitadas por aquele pequeno rato no canto
de seu quarto frio e empoeirado, tentava organizar em sua mente perturbada uma
resposta à altura:
— Você diz que
se enoja de mim? Você anda sobre minhas fezes e come os restos daquilo que eu
não mais quero. Como pode falar em fraqueza se rasteja pelos cantos e bueiros,
imundo e portador de tantas doenças? Sua presença é motivo de asco para todos,
asco esse, menor apenas do que o ódio que nutrem por você.
— Doença! Uma
palavra forte! — disse o rato. Não se esqueça que a doença aqui é você. Já deve
ter ouvido pela boca de um de seus demagogos irmãos em espécie que vocês
próprios são a doença do mundo. Certamente ouviu que é a única espécie viva
que se extinta só traria benefícios ao planeta. Mata-me logo. Acabe com meu
sofrimento.
— E agora, por
que quer morrer?
— Isso não é
da sua conta. Apenas faça o que eu digo.
— Não. Eu
insisto em saber.
— Sei que faço
parte de um todo. Deixarei de existir, mas o meu corpo continuará por aqui,
fará parte deste mundo por toda a eternidade. Tenho consciência de minhas
fraquezas e sei que a dor inquietante que sinto ao ver toda a natureza se
esvair diante de sua ignorância, com a sua tão aclamada modernidade e
racionalidade, não passará de modo algum, e cheguei à conclusão de que não fará
muita diferença se eu viver ou morrer; vocês continuarão aí até destruir tudo e
sucumbirem sob seus próprios escombros. Eu já vivi muito e vi coisas que me
fazem arrepiar todos os meus pelos pela simples lembrança. Anda! Mata-me logo.
Acabe logo com isso.
O homem soltou
a vassoura, levantou-se, e dando de ombros à criaturinha, saiu lentamente do
quarto, deixando para trás um pequeno rato com os olhos entristecidos e a voz
embargada a se apoiar sobre as duas patas traseiras com as mãos juntas e os
bigodes arqueados. A dor do homem e do rato agora eram equivalentes.
Daquele dia em
diante, conviveram naquela casa a se ignorarem como se nada houvesse acontecido.
O rato, cada dia mais velho, a vida para ele passava mais depressa; o homem,
cada dia mais soturno e distante, a vida para ele passava lenta e
desgraçadamente dolorosa.
Como que
impelidos por uma força maior e sobrenatural, encontraram-se algumas semanas
após, numa tarde de julho fria e estranhamente calma, cada um a seu canto do
ringue e saborearam um pedaço fresco de queijo. Não se entreolharam nem mesmo
fizeram menção à presença um do outro. Naquela noite morreram, cada um a seu
canto do quarto empoeirado, cada um envenenado por sua própria vida
estranhamente dolorosa.