sábado, 3 de janeiro de 2015

Devaneios (trecho)



[...]
O ribombar continuava e o tropel o acompanhava, ritmados e aterradores e acabei me convencendo que só poderiam vir daquela plantação de milho à minha frente. E convencido da iminência de um exército a se descortinar em meio àquele mar verde, consegui forças para arrastar o fuzil para mais próximo de mim. Não mais que isso. A esperança de poder empunhá-lo mais uma vez era apenas mais uma de minhas tentativas vãs de afastar a idéia de que a morte já me abraçava, independente de uma cavalaria que passaria e se encaminharia à mata às minhas costas a fim de alcançar o rio, certamente a despeito de minha presença, pois deveria já me assemelhar a um cadáver.
Estranhamente ainda havia forças.
As pálpebras antes pesadas, agora se abriam, num arregalar de olhos aterrorizado, enquanto os tambores ressoavam e o tropel continuava. Quanto tempo eu deveria provar daquela agonia até o momento em que todo aquele som se revelaria como um exército a marchar para a guerra e um tiro de misericórdia me retiraria o pouco de vida que ainda me restara?
Aos poucos comecei a divisar naquela plantação vultos que subiam e desciam rapidamente, como que se aproximassem aos pulos, cada vez mais perto, assim como o som que aumentava, não mais parado, mas se movimentando em minha direção. Vários e vários pontos subiam e desciam rapidamente em meio ao verde daquele milharal em toda a sua extensão. A cavalaria era, então, enorme, uma horda de incontáveis inimigos se descortinaria diante de mim. Mas de onde vinham? Desceram os morros atrás da plantação? Como, se eu não os vira? Ou estavam ocultados ali à espreita de algo?
O ribombar dos tambores agora se tornara o único som audível naquela paisagem, quebrado apenas pelo tropel que se fazia cada vez mais alto em cada intervalo entre um martelar e outro nos tambores. Os pássaros não fugiam daquele som. Continuavam a voar e a pousar próximos a mim como se nada mais estivesse acontecendo. Pensava que a guerra finalmente me enlouquecera ou que os devaneios de um corpo e mente que se entregam à morte estivessem brincando comigo. Mas continuava atento ao que poderia sair de dentro daquele milharal.
Senti a respiração aumentar e o coração acelerar, como quando me via diante de uma batalha. Talvez fosse o sinal de que tudo aquilo ali era realidade.

De repente, trombetas ecoaram ainda mais altas que o ribombar ritmado dos tambores num som tão longo e límpido que poderia muito bem ter sido tocadas por anjos, mas que naquele momento apenas me faziam temer ainda mais o que estaria por vir. E, tocadas as trombetas, todo o som que vinha da plantação cessou e foi substituído novamente pela cachoeira às minhas costas e pela algazarra dos pássaros.
[...]

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