domingo, 12 de maio de 2013

Lágrimas no Tibet





No topo das montanhas geladas do Tibet, onde os raios de sol surgem como alento aos corações solitários de errantes e alpinistas, um jovem monge chorava sentado sobre os escombros de um velho mosteiro, acompanhado de um lado por um cão e do outro por uma velha cabra, ambos com seus olhos tristes e singelos, mirando ao longe a paisagem de picos gelados a emergir em meio ao grande e maciço bloco de nuvens, se assemelhando a ilhas em um oceano branco.
O jovem tinha em uma das mãos um pequeno violino sem cordas, no corpo do qual se podia ver escrito em runas antigas uma pequena frase que traduzida de forma literal dizia: “Onde a paz encontra o coração do homem, a natureza se ajoelha em reverência”; outros, porém, poderiam traduzi-la de uma forma um tanto diferente, mas não comprovadamente incorreta: “Este pertenceu a um rei bastardo”. O violino era de uma beleza inigualável, de cor extremamente negra, salpicado de pontos brancos, como a noite repleta de estrelas.
Aquele choro silencioso vindo dos olhos paradoxalmente alegres num rosto marcado pelo sorriso sincero daquele jovem parecia apenas um derramar sem propósito de lágrimas, as quais escorriam frias pelas suas bochechas rosadas até caírem como pequenas contas de cristal no desfiladeiro no qual fora construído e em tempos imemoriais desmoronara o mosteiro. Tão logo tocavam a terra alguns metros abaixo, transformavam-se em filetes de água escorrendo por entre as pedras, deslizando atrevidos como pequenas serpentes que iam se encontrando uma a uma até chegarem ao meio da montanha, onde tomavam maiores proporções. Seguiam formando um pequeno riacho que ia se alargando até tomar a forma de um grande rio caudaloso que descia as encostas, dessa vez como um grande dragão a serpentear ruidoso a terra dura e gelada que era o Tibet. Logo margeava a base de outras montanhas, encontrava-se com outros rios vindos sabe-se lá de onde, provavelmente das lágrimas de um outro jovem budista com seu rosto paradoxalmente feliz e rosado, no topo de uma outra grande montanha. Formavam, assim, um mar de lágrimas, espalhando-se cheio de vida por terras ainda mais distantes, cobrindo grandes desertos.
Aqui e ali podiam ser vistos pequenos barcos onde se amontoavam famílias a buscar refúgio nas ilhas que emergiam do mar de lágrimas dos pequenos monges budistas. Diversas delas nasciam quase que instantaneamente, repletas de grandes árvores frutíferas e animais de todas as espécies que vinham saudar com folhas de coqueiro os homens, mulheres e crianças que atracavam em suas praias.
A águia voava no céu azul da manhã iluminada, fazendo pequenos círculos enquanto via logo abaixo o seu reflexo no grande oceano de lágrimas, que era límpido e sereno como a alma de uma criança.
Houve um terremoto no ocidente e ao longe, com os olhos argutos de um lince e o grande discernimento das corujas das estepes, podia-se divisar uma massa de altivos soldados em marcha. Um exército que se erguia portando grandes e pesados escudos de prata e manejando lanças de um brilho ímpar. Na fronte de cada um daqueles homens via-se desenhada uma flor de lótus ou um hibisco vermelho. Nos seus corações a chama do espírito guerreiro agora dava espaço à chama dos dias de paz. Num movimento sincronizado pararam à beira de um lago de águas serenas e douradas e lançaram suas vestes, seus escudos e suas lanças e permaneceram cobertos apenas por peles e observaram a águia que por sua vez também os observava.
O pequeno monge budista não os via, sentado sobre os escombros do mosteiro milenar no topo de uma montanha no Tibet. O que ele via era um maciço de nuvens, no meio do qual emergiam picos e mais picos de montanhas geladas.
Agora o oceano de lágrimas cobria dois terços da terra antes seca e sem vida, outrora marcada por encostas e escarpas, desfiladeiros e planaltos, e todas as grandes e pequenas formações geológicas, todas elas desprovidas de vida, naquilo que num passado distante se convencionou chamar de Terra.
Dos olhos do pequeno monge as lágrimas escorriam puras e sinceras, firmes e contínuas, indiferentes à alegria dos olhos de onde surgiam.
O cão e a cabra agora dormiam ressonantes e ternos.

sábado, 11 de maio de 2013

Tique Taque - Uma triste homenagem ao dia das mães



Eu tinha a sensação perturbadora de receber uma martelada no cérebro a cada tique-taque do relógio de camelô pendurado na minha sala de estar. Era um daqueles relógios de plástico, enfeitado com desenhos e que tocava uma música a cada hora do dia; a mais triste e melancólica era a da meia noite ou meio dia, afinal havia apenas 12 músicas diferentes, mas como a meia noite é sempre um prato cheio a seus maiores medos, aquela badalada do meio dia soada à zero hora adquiria características e acordes muito mais funestos.
O silêncio na sala de estar era quebrado apenas por aquele tique-taque irritante e pelo som que fazia a minha perna ao roçar no sofá, enquanto eu me entregava ao tique causado pelo meu nervosismo, subindo e descendo meu calcanhar direito num movimento repetitivo e contínuo, enquanto tentava, em vão, ler o jornal do dia anterior. Não lia. Apenas corria os olhos pela página, reconhecendo uma e outra palavra, numa tentativa desesperada de me ver livre da ansiedade que tanto machucava o meu ser.
Aqueles minutos iam se arrastando tão lentos que eu poderia tocar o tempo.
Olhava vez ou outra a foto sobre a mesinha de centro na qual eu me encontrava sorridente ao lado de minha mãe, enquanto segurava minha pequena filhinha no colo. A angústia ia aumentando e o meu coração se juntava ao som do relógio para quebrar o silêncio que se espraiava por todo o ambiente. Aliás, era um ambiente bastante exíguo, o qual eu tentava fazer parecer um lar, decorando-o com flores e cortinas brancas, a foto de meu velho papaizinho ao lado da imagem de Santa Luzia, próximos à janela que dava de frente para um prédio enorme e velho, o qual não havia sido acabado por algum problema em sua estrutura e ficava ali, a exibir a sua carcaça, desnuda e enegrecida pelo tempo, com ratos e baratas, perambulando em seu interior. Animais asquerosos que resolviam fazer suas visitas diárias ao nosso apartamento.
Os dias eram felizes desde que estivéssemos unidas, mas eram duros, extremamente difíceis.
A angústia da espera me fazia transpirar e um frio percorria minha espinha, enquanto o jornal em minhas mãos vibrava embalado pelo meu tique nervoso. Sentia meu coração bater cada vez mais forte, palpitando e reverberando através de meu peito, chegando à minha garganta, onde um nó me fazia conter o choro iminente. Sentia-me insegura e desamparada, principalmente por estar sozinha diante daquela situação vexatória, a qual em poucos instantes eu iria protagonizar.
Assim, eu esperava com os olhos vermelhos, mas secos como o deserto. Naquele momento as lágrimas me fugiam e eu me apegava a isso, acreditando-me demasiadamente forte. Eu não queria estar ali, mas somente eu podia vivenciar aquilo tudo. Poupara minha mãe e minha pequena filhinha, conseguindo que se ausentassem por dois dias na casa de alguns parentes distantes numa cidade vizinha.
Minha mãe, já muito doente, assim como eu, diante de sua grande integridade e altivez, apesar de todas as adversidades, adiantaria o dia de sua morte e levaria consigo metade de minha esperança de dias melhores se ali estivesse naquele fatídico dia. Ela me apoiara e cuidara de mim desde a morte de meu pai naquele acidente, do qual eu guardo apenas duas recordações: o som do metal rangendo contra metal num estrondo de milésimos de segundo, mas que perpetua na minha mente como se tivesse acontecido em minutos angustiantes, relembrados em câmera lenta, e uma cicatriz em minha perna esquerda. Apenas meu bom e velho pai se vitimara e hoje zelava por nós no céu distante.
Absorta em meus pensamentos e em minha tensão mal contida, voltei a mim no momento em que o silêncio ensurdecedor da sala de estar foi interrompido pelo som de batidas na porta.
Levantei-me a muito custo, já que minhas pernas vacilavam e meu corpo inteiro tremia diante do terror que experimentava. Arfei o máximo de ar que pude, endireitei meu corpo, engoli a seco toda a angústia que apertava minha garganta por meio daquele nó ao mesmo tempo em que colocava o jornal sobre a mesa de centro, ao lado de minha mãe, minha filha e eu, e caminhei em direção à porta, insegura e com uma vontade quase sufocante de gritar a plenos pulmões e desabar em choro ali mesmo.
Olhei mais uma vez a foto de meu pai, de minha mãe e minha filha e, até mesmo, para o quadro de Santa Luzia.
Mais uma batida, quase que ao mesmo tempo em que eu girava a chave e segurava a maçaneta.
Quando abri aquela porta, vi diante de mim um senhor que não aparentava mais de 40 anos, com a barba por fazer, mas cheirando a loção pós-barba, os olhos miúdos e a testa reta, extremada abaixo por sobrancelhas grossas e pesadas e acima por um cabelo extremamente liso, com uma ou outra mecha mais rebelde caindo-lhe sobre a testa ao fugir de seu penteado estilo social. Vestia um terno azul marinho e tinha os sapatos impecavelmente engraxados, e em uma das mãos pendia uma maleta, a qual me trazia demasiada ojeriza, pois eu sabia exatamente o que guardava.
— Boa tarde, senhora! — foram suas palavras.
Eu apenas me permiti sorrir levemente, mas fora um sorriso sem convicção, vazio e temeroso, que não demorara mais do que algumas frações de segundo, talvez imperceptível.
— Acho que sabe o motivo de minha visita — ele continuou.
Meu coração disparou e eu não pude conter a lágrima que desafiou minha indiferença forçada; e minha porca atuação se desfez em menos de 10 segundos após a primeira troca de olhares com aquele senhor. Eu não podia admitir a fraqueza nem ao menos diante da derrota.
Naquele momento ele olhou por sobre meus ombros e viu minha sala com seus próprios olhos.
Na certa ele pôde reparar os móveis escorados aqui e ali por calços, viu as paredes de minha sala ainda em alvenaria nua, o mofo verde ao lado de meu sofá, este com rasgos enormes, a mesa de centro improvisada com tijolos e um pedaço de compensado, o cesto lotado de caixas de remédio e a televisão de 14 polegadas. Acredito que possa ter visto até mesmo uma ou outra barata, muito provavelmente faminta, pois nem eu mesma tinha o que comer naquela tarde. E certamente pôde ver a foto de meu pai, de minha filha, de minha mãe, de Santa Luzia e a minha própria foto sorridente.
Ele abriu a maleta e eu levei as mãos à boca para segurar o grito de dor, retirou de dentro uma folha de papel e pediu que eu a assinasse, e disse já com a voz embargada:
__ Em três dias virão os conselheiros tutelares e a levarão. Por enquanto — aí ele fez uma pausa, pois olhava no fundo dos meus olhos e de alguma forma se compadecia; e continuou — fique com ela e não se esqueça que tudo um dia pode mudar.
Eu não pude dizer uma única palavra e depois de assinada aquela folha de papel, eu a entreguei aquele senhor e fechei a porta diante dele, enclausurando-me em meu recanto de dor.
Caí de joelhos e chorei lágrimas que arderam minha face.
Agora os dias seriam ainda mais duros e difíceis, pois não estaríamos mais unidas.

Tique-taque, continuava o relógio na sala de estar fria e vazia.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sempre foi assim



20 de março de 2011, domingo.
Parecia mais um dia comum, e era realmente um dia comum. Era mais um domingo ensolarado e as crianças brincavam no playground, fazendo uma algazarra tamanha que se confundiam a um bando de pardais a se fartar de arroz; a TV estava, como de costume, ligada em um canal qualquer e eu não tinha a mínima idéia do que fazer de interessante.
Naquela tarde eu me deitei no sofá em frente àquela televisão tagarela e a minha completa “paixão” por programas dominicais me fez desviar meus olhos para as manchas de mofo que se espalhavam imponentes e em formas diversas no teto do meu apartamento. Vi flores, elefantes, vi inclusive figuras famosas, como atores e políticos inidôneos e políticos inidôneos, ou seja, políticos. O resultado daquela contemplação, daquela imaginação fluida, como não acontecia há anos, foi lembrar-me de minha infância e resolver revirar as minhas coisas antigas, minhas pequenas recordações que estavam guardadas em um pequeno baú que havia pertencido a meu avô e que eu recebera ao completar 10 anos de idade, dia da minha primeira comunhão.
Revirando aquelas relíquias, encontrei o meu antigo diário e a primeira coisa que me veio à cabeça não foi ler suas páginas amareladas, e sim, apanhar uma caneta e começar a escrever a primeira coisa que viesse à minha cabeça.
Numa fração de segundos comecei a divagar sobre algo que sempre me intrigou, eu acho, ou melhor, provavelmente tenha me intrigado por muito tempo, ainda que intimamente, no âmago de minha inconsciência. Antes de qualquer coisa, resolvi escrever essas palavras que antecederam. Agora sigo à minha explanação:
É difícil entender a lógica ilógica das coisas, tão difícil quanto tentar entender os motivos que levariam uma pessoa a escrever sobre algo tão desinteressante. Acredito que não seja tão desinteressante, mas num domingo ensolarado, não haveria de ser tudo desinteressante, a começar pelos programas de TV e diários de menino?
Estava completamente vestido: chinelos, shorts e camiseta, apesar de estar suando feito uma chaleira. A minha vontade era de estar nu, afinal eu estava sozinho em casa, aliás, eu vivia sozinho em casa; e além do mais, nunca era visitado, exceto quando eu atrasava o pagamento do aluguel. O síndico, um homem gordo e com um bigode preto que escondia boa parte sua boca, deixando à mostra apenas o lábio e dentes inferiores, morava no andar de baixo e mês sim, mês não, via a necessidade de me fazer uma visita sem um motivo específico, mas o qual eu conhecia, não por suas próprias palavras, mas eu bem sabia que se dava pelo atraso de dois ou três dias, os quais eram totalmente justificáveis, afinal eu era autônomo, dependia do mercado de pequenas obras e pequenos consertos para angariar meus trocados.
Aquele apresentador gordo e mal educado já havia começado o seu programa, a interromper os seus entrevistados e a falar com uma autoridade forçada sobre todos os assuntos suscitados. Vi que era aquilo outra coisa que eu não conseguia compreender: aquele senhor irritante continuar há tantos anos a invadir a minha intimidade e a de tantas outras pessoas todos os domingos. A sociedade estava cheia de muitos outros exemplos como aquele; tantos que eu não poderia listá-los.
Logo me veio à cabeça uma pesquisa científica da qual eu não tenho muita certeza sobre a sua credibilidade ou mesmo sobre sua existência, mas explicava um pouco essa mentalidade ilógica ou pelo menos tentava, se é que, como já disse, realmente existia. Sobre tal pesquisa (história) temos as seguintes palavras chave: macaco, banana, escada e jato d’água. Então, se já ouviu falar dessa pesquisa, vá direto ao 5º parágrafo a seguir.

Um grupo de chimpanzés foi colocado numa jaula, no teto da qual foi pendurado um cacho de bananas. Os pesquisadores, que para mim era um bando de desocupados, colocaram uma escada debaixo daquele cacho e quando um dos macacos tentava subir para apanhá-lo, os demais recebiam fortes jatos d’água, o que os fez, a partir de certo ponto, começar a agredir todos que tentavam subir para apanhar as bananas.
Num dado momento os pesquisadores pararam de lançar os tão incômodos jatos d’água, mas assim que um dos chimpanzés tentava subir a escada os outros o surravam, até que nenhum deles se arriscava mais a alcançar o cacho.
Um a um eles começaram a ser substituídos e, tão logo o novo membro começava a subir aquela escada, recebia uma bela sova dos demais sem saber exatamente o motivo, até que ele mesmo passava a bater nos novos companheiros de jaula que eram colocados em substituição aos primeiros.
Foi assim até que não restou naquela jaula nenhum dos macacos que originalmente recebeu o jato d’água, mas a prática de surrar quem quer que tentasse subir aquela escada já estava de tal forma arraigada naquele grupo que todos os seus membros o faziam sem fazer idéia do real motivo que os levava a fazê-lo. A única explicação que eles tinham pro seu próprio comportamento provavelmente era “não sei o porquê, só sei que sempre foi assim”.

Acho que era essa a explicação que eu poderia dar sobre a forma como me portava diante daquele domingo ensolarado. Eu estava em casa, completamente vestido, apesar de sozinho e me derretendo num calor de 32º, com a tv ligada num canal alienante qualquer, ouvindo um gordo a falar alto e a interromper seus entrevistados. Naquele dia eu almoçara sozinho, mas estava triste porque devia almoçar em família, coisa que eu não tinha, afinal era domingo e eu devia ter almoçado com uma, qualquer uma, nem que fosse a família do síndico de bigodes pretos, se é que eles me aceitariam em seu palacete.
O dia radiante, que passava lento ao som da algazarra feita pelas crianças no playground, era mais um domingo na minha vida sozinha, fria, e digo isso em plena consciência de que faziam 32º Celsius, medíocre e tragicômica.
Não sabia exatamente o motivo de escrever naquele diário, nem por que aquele caderno recebia aquele nome, se dificilmente alguém escrevia diariamente nele. Eu mesmo demorara cerca de 30 anos para me aventurar de novo entre suas linhas azuis. Estranhava o domingo ser considerado fim de semana, se em qualquer calendário ele é o primeiro dia da semana, e não sabia nem mesmo por que eu dediquei tantas linhas a esse choramingo inútil, o qual não seria lido por ninguém, afinal, diários são coisas íntimas, e o que se escreve nele fica guardado apenas para quem o escreveu. Então por que escrever? Talvez um dia alguém leia, e por isso eu escreva como se tivesse um interlocutor, mas só “talvez”.
A razão de minha rotina e de todos que conheço se pautar em coisas tão ilógicas eu não sei, aliás, a única certeza que tenho é que eu não sei, só sei que sempre foi assim.