sábado, 11 de maio de 2013

Tique Taque - Uma triste homenagem ao dia das mães



Eu tinha a sensação perturbadora de receber uma martelada no cérebro a cada tique-taque do relógio de camelô pendurado na minha sala de estar. Era um daqueles relógios de plástico, enfeitado com desenhos e que tocava uma música a cada hora do dia; a mais triste e melancólica era a da meia noite ou meio dia, afinal havia apenas 12 músicas diferentes, mas como a meia noite é sempre um prato cheio a seus maiores medos, aquela badalada do meio dia soada à zero hora adquiria características e acordes muito mais funestos.
O silêncio na sala de estar era quebrado apenas por aquele tique-taque irritante e pelo som que fazia a minha perna ao roçar no sofá, enquanto eu me entregava ao tique causado pelo meu nervosismo, subindo e descendo meu calcanhar direito num movimento repetitivo e contínuo, enquanto tentava, em vão, ler o jornal do dia anterior. Não lia. Apenas corria os olhos pela página, reconhecendo uma e outra palavra, numa tentativa desesperada de me ver livre da ansiedade que tanto machucava o meu ser.
Aqueles minutos iam se arrastando tão lentos que eu poderia tocar o tempo.
Olhava vez ou outra a foto sobre a mesinha de centro na qual eu me encontrava sorridente ao lado de minha mãe, enquanto segurava minha pequena filhinha no colo. A angústia ia aumentando e o meu coração se juntava ao som do relógio para quebrar o silêncio que se espraiava por todo o ambiente. Aliás, era um ambiente bastante exíguo, o qual eu tentava fazer parecer um lar, decorando-o com flores e cortinas brancas, a foto de meu velho papaizinho ao lado da imagem de Santa Luzia, próximos à janela que dava de frente para um prédio enorme e velho, o qual não havia sido acabado por algum problema em sua estrutura e ficava ali, a exibir a sua carcaça, desnuda e enegrecida pelo tempo, com ratos e baratas, perambulando em seu interior. Animais asquerosos que resolviam fazer suas visitas diárias ao nosso apartamento.
Os dias eram felizes desde que estivéssemos unidas, mas eram duros, extremamente difíceis.
A angústia da espera me fazia transpirar e um frio percorria minha espinha, enquanto o jornal em minhas mãos vibrava embalado pelo meu tique nervoso. Sentia meu coração bater cada vez mais forte, palpitando e reverberando através de meu peito, chegando à minha garganta, onde um nó me fazia conter o choro iminente. Sentia-me insegura e desamparada, principalmente por estar sozinha diante daquela situação vexatória, a qual em poucos instantes eu iria protagonizar.
Assim, eu esperava com os olhos vermelhos, mas secos como o deserto. Naquele momento as lágrimas me fugiam e eu me apegava a isso, acreditando-me demasiadamente forte. Eu não queria estar ali, mas somente eu podia vivenciar aquilo tudo. Poupara minha mãe e minha pequena filhinha, conseguindo que se ausentassem por dois dias na casa de alguns parentes distantes numa cidade vizinha.
Minha mãe, já muito doente, assim como eu, diante de sua grande integridade e altivez, apesar de todas as adversidades, adiantaria o dia de sua morte e levaria consigo metade de minha esperança de dias melhores se ali estivesse naquele fatídico dia. Ela me apoiara e cuidara de mim desde a morte de meu pai naquele acidente, do qual eu guardo apenas duas recordações: o som do metal rangendo contra metal num estrondo de milésimos de segundo, mas que perpetua na minha mente como se tivesse acontecido em minutos angustiantes, relembrados em câmera lenta, e uma cicatriz em minha perna esquerda. Apenas meu bom e velho pai se vitimara e hoje zelava por nós no céu distante.
Absorta em meus pensamentos e em minha tensão mal contida, voltei a mim no momento em que o silêncio ensurdecedor da sala de estar foi interrompido pelo som de batidas na porta.
Levantei-me a muito custo, já que minhas pernas vacilavam e meu corpo inteiro tremia diante do terror que experimentava. Arfei o máximo de ar que pude, endireitei meu corpo, engoli a seco toda a angústia que apertava minha garganta por meio daquele nó ao mesmo tempo em que colocava o jornal sobre a mesa de centro, ao lado de minha mãe, minha filha e eu, e caminhei em direção à porta, insegura e com uma vontade quase sufocante de gritar a plenos pulmões e desabar em choro ali mesmo.
Olhei mais uma vez a foto de meu pai, de minha mãe e minha filha e, até mesmo, para o quadro de Santa Luzia.
Mais uma batida, quase que ao mesmo tempo em que eu girava a chave e segurava a maçaneta.
Quando abri aquela porta, vi diante de mim um senhor que não aparentava mais de 40 anos, com a barba por fazer, mas cheirando a loção pós-barba, os olhos miúdos e a testa reta, extremada abaixo por sobrancelhas grossas e pesadas e acima por um cabelo extremamente liso, com uma ou outra mecha mais rebelde caindo-lhe sobre a testa ao fugir de seu penteado estilo social. Vestia um terno azul marinho e tinha os sapatos impecavelmente engraxados, e em uma das mãos pendia uma maleta, a qual me trazia demasiada ojeriza, pois eu sabia exatamente o que guardava.
— Boa tarde, senhora! — foram suas palavras.
Eu apenas me permiti sorrir levemente, mas fora um sorriso sem convicção, vazio e temeroso, que não demorara mais do que algumas frações de segundo, talvez imperceptível.
— Acho que sabe o motivo de minha visita — ele continuou.
Meu coração disparou e eu não pude conter a lágrima que desafiou minha indiferença forçada; e minha porca atuação se desfez em menos de 10 segundos após a primeira troca de olhares com aquele senhor. Eu não podia admitir a fraqueza nem ao menos diante da derrota.
Naquele momento ele olhou por sobre meus ombros e viu minha sala com seus próprios olhos.
Na certa ele pôde reparar os móveis escorados aqui e ali por calços, viu as paredes de minha sala ainda em alvenaria nua, o mofo verde ao lado de meu sofá, este com rasgos enormes, a mesa de centro improvisada com tijolos e um pedaço de compensado, o cesto lotado de caixas de remédio e a televisão de 14 polegadas. Acredito que possa ter visto até mesmo uma ou outra barata, muito provavelmente faminta, pois nem eu mesma tinha o que comer naquela tarde. E certamente pôde ver a foto de meu pai, de minha filha, de minha mãe, de Santa Luzia e a minha própria foto sorridente.
Ele abriu a maleta e eu levei as mãos à boca para segurar o grito de dor, retirou de dentro uma folha de papel e pediu que eu a assinasse, e disse já com a voz embargada:
__ Em três dias virão os conselheiros tutelares e a levarão. Por enquanto — aí ele fez uma pausa, pois olhava no fundo dos meus olhos e de alguma forma se compadecia; e continuou — fique com ela e não se esqueça que tudo um dia pode mudar.
Eu não pude dizer uma única palavra e depois de assinada aquela folha de papel, eu a entreguei aquele senhor e fechei a porta diante dele, enclausurando-me em meu recanto de dor.
Caí de joelhos e chorei lágrimas que arderam minha face.
Agora os dias seriam ainda mais duros e difíceis, pois não estaríamos mais unidas.

Tique-taque, continuava o relógio na sala de estar fria e vazia.

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