sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sempre foi assim



20 de março de 2011, domingo.
Parecia mais um dia comum, e era realmente um dia comum. Era mais um domingo ensolarado e as crianças brincavam no playground, fazendo uma algazarra tamanha que se confundiam a um bando de pardais a se fartar de arroz; a TV estava, como de costume, ligada em um canal qualquer e eu não tinha a mínima idéia do que fazer de interessante.
Naquela tarde eu me deitei no sofá em frente àquela televisão tagarela e a minha completa “paixão” por programas dominicais me fez desviar meus olhos para as manchas de mofo que se espalhavam imponentes e em formas diversas no teto do meu apartamento. Vi flores, elefantes, vi inclusive figuras famosas, como atores e políticos inidôneos e políticos inidôneos, ou seja, políticos. O resultado daquela contemplação, daquela imaginação fluida, como não acontecia há anos, foi lembrar-me de minha infância e resolver revirar as minhas coisas antigas, minhas pequenas recordações que estavam guardadas em um pequeno baú que havia pertencido a meu avô e que eu recebera ao completar 10 anos de idade, dia da minha primeira comunhão.
Revirando aquelas relíquias, encontrei o meu antigo diário e a primeira coisa que me veio à cabeça não foi ler suas páginas amareladas, e sim, apanhar uma caneta e começar a escrever a primeira coisa que viesse à minha cabeça.
Numa fração de segundos comecei a divagar sobre algo que sempre me intrigou, eu acho, ou melhor, provavelmente tenha me intrigado por muito tempo, ainda que intimamente, no âmago de minha inconsciência. Antes de qualquer coisa, resolvi escrever essas palavras que antecederam. Agora sigo à minha explanação:
É difícil entender a lógica ilógica das coisas, tão difícil quanto tentar entender os motivos que levariam uma pessoa a escrever sobre algo tão desinteressante. Acredito que não seja tão desinteressante, mas num domingo ensolarado, não haveria de ser tudo desinteressante, a começar pelos programas de TV e diários de menino?
Estava completamente vestido: chinelos, shorts e camiseta, apesar de estar suando feito uma chaleira. A minha vontade era de estar nu, afinal eu estava sozinho em casa, aliás, eu vivia sozinho em casa; e além do mais, nunca era visitado, exceto quando eu atrasava o pagamento do aluguel. O síndico, um homem gordo e com um bigode preto que escondia boa parte sua boca, deixando à mostra apenas o lábio e dentes inferiores, morava no andar de baixo e mês sim, mês não, via a necessidade de me fazer uma visita sem um motivo específico, mas o qual eu conhecia, não por suas próprias palavras, mas eu bem sabia que se dava pelo atraso de dois ou três dias, os quais eram totalmente justificáveis, afinal eu era autônomo, dependia do mercado de pequenas obras e pequenos consertos para angariar meus trocados.
Aquele apresentador gordo e mal educado já havia começado o seu programa, a interromper os seus entrevistados e a falar com uma autoridade forçada sobre todos os assuntos suscitados. Vi que era aquilo outra coisa que eu não conseguia compreender: aquele senhor irritante continuar há tantos anos a invadir a minha intimidade e a de tantas outras pessoas todos os domingos. A sociedade estava cheia de muitos outros exemplos como aquele; tantos que eu não poderia listá-los.
Logo me veio à cabeça uma pesquisa científica da qual eu não tenho muita certeza sobre a sua credibilidade ou mesmo sobre sua existência, mas explicava um pouco essa mentalidade ilógica ou pelo menos tentava, se é que, como já disse, realmente existia. Sobre tal pesquisa (história) temos as seguintes palavras chave: macaco, banana, escada e jato d’água. Então, se já ouviu falar dessa pesquisa, vá direto ao 5º parágrafo a seguir.

Um grupo de chimpanzés foi colocado numa jaula, no teto da qual foi pendurado um cacho de bananas. Os pesquisadores, que para mim era um bando de desocupados, colocaram uma escada debaixo daquele cacho e quando um dos macacos tentava subir para apanhá-lo, os demais recebiam fortes jatos d’água, o que os fez, a partir de certo ponto, começar a agredir todos que tentavam subir para apanhar as bananas.
Num dado momento os pesquisadores pararam de lançar os tão incômodos jatos d’água, mas assim que um dos chimpanzés tentava subir a escada os outros o surravam, até que nenhum deles se arriscava mais a alcançar o cacho.
Um a um eles começaram a ser substituídos e, tão logo o novo membro começava a subir aquela escada, recebia uma bela sova dos demais sem saber exatamente o motivo, até que ele mesmo passava a bater nos novos companheiros de jaula que eram colocados em substituição aos primeiros.
Foi assim até que não restou naquela jaula nenhum dos macacos que originalmente recebeu o jato d’água, mas a prática de surrar quem quer que tentasse subir aquela escada já estava de tal forma arraigada naquele grupo que todos os seus membros o faziam sem fazer idéia do real motivo que os levava a fazê-lo. A única explicação que eles tinham pro seu próprio comportamento provavelmente era “não sei o porquê, só sei que sempre foi assim”.

Acho que era essa a explicação que eu poderia dar sobre a forma como me portava diante daquele domingo ensolarado. Eu estava em casa, completamente vestido, apesar de sozinho e me derretendo num calor de 32º, com a tv ligada num canal alienante qualquer, ouvindo um gordo a falar alto e a interromper seus entrevistados. Naquele dia eu almoçara sozinho, mas estava triste porque devia almoçar em família, coisa que eu não tinha, afinal era domingo e eu devia ter almoçado com uma, qualquer uma, nem que fosse a família do síndico de bigodes pretos, se é que eles me aceitariam em seu palacete.
O dia radiante, que passava lento ao som da algazarra feita pelas crianças no playground, era mais um domingo na minha vida sozinha, fria, e digo isso em plena consciência de que faziam 32º Celsius, medíocre e tragicômica.
Não sabia exatamente o motivo de escrever naquele diário, nem por que aquele caderno recebia aquele nome, se dificilmente alguém escrevia diariamente nele. Eu mesmo demorara cerca de 30 anos para me aventurar de novo entre suas linhas azuis. Estranhava o domingo ser considerado fim de semana, se em qualquer calendário ele é o primeiro dia da semana, e não sabia nem mesmo por que eu dediquei tantas linhas a esse choramingo inútil, o qual não seria lido por ninguém, afinal, diários são coisas íntimas, e o que se escreve nele fica guardado apenas para quem o escreveu. Então por que escrever? Talvez um dia alguém leia, e por isso eu escreva como se tivesse um interlocutor, mas só “talvez”.
A razão de minha rotina e de todos que conheço se pautar em coisas tão ilógicas eu não sei, aliás, a única certeza que tenho é que eu não sei, só sei que sempre foi assim.

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