Parecia mais
um dia comum, e era realmente um dia comum. Era mais um domingo ensolarado e as
crianças brincavam no playground, fazendo uma algazarra tamanha que se
confundiam a um bando de pardais a se fartar de arroz; a TV estava, como de
costume, ligada em um canal qualquer e eu não tinha a mínima idéia do que fazer
de interessante.
Naquela tarde
eu me deitei no sofá em frente àquela televisão tagarela e a minha completa “paixão”
por programas dominicais me fez desviar meus olhos para as manchas de mofo que
se espalhavam imponentes e em formas diversas no teto do meu apartamento. Vi
flores, elefantes, vi inclusive figuras famosas, como atores e políticos
inidôneos e políticos inidôneos, ou seja, políticos. O resultado daquela contemplação,
daquela imaginação fluida, como não acontecia há anos, foi lembrar-me de minha
infância e resolver revirar as minhas coisas antigas, minhas pequenas
recordações que estavam guardadas em um pequeno baú que havia pertencido a meu
avô e que eu recebera ao completar 10 anos de idade, dia da minha primeira
comunhão.
Revirando
aquelas relíquias, encontrei o meu antigo diário e a primeira coisa que me veio
à cabeça não foi ler suas páginas amareladas, e sim, apanhar uma caneta e
começar a escrever a primeira coisa que viesse à minha cabeça.
Numa fração de
segundos comecei a divagar sobre algo que sempre me intrigou, eu acho, ou
melhor, provavelmente tenha me intrigado por muito tempo, ainda que
intimamente, no âmago de minha inconsciência. Antes de qualquer coisa, resolvi
escrever essas palavras que antecederam. Agora sigo à minha explanação:
É difícil
entender a lógica ilógica das coisas, tão difícil quanto tentar entender os
motivos que levariam uma pessoa a escrever sobre algo tão desinteressante. Acredito
que não seja tão desinteressante, mas num domingo ensolarado, não haveria de
ser tudo desinteressante, a começar pelos programas de TV e diários de menino?
Estava
completamente vestido: chinelos, shorts e camiseta, apesar de estar suando
feito uma chaleira. A minha vontade era de estar nu, afinal eu estava sozinho
em casa, aliás, eu vivia sozinho em casa; e além do mais, nunca era visitado,
exceto quando eu atrasava o pagamento do aluguel. O síndico, um homem gordo e
com um bigode preto que escondia boa parte sua boca, deixando à mostra apenas o
lábio e dentes inferiores, morava no andar de baixo e mês sim, mês não, via a
necessidade de me fazer uma visita sem um motivo específico, mas o qual eu
conhecia, não por suas próprias palavras, mas eu bem sabia que se dava pelo
atraso de dois ou três dias, os quais eram totalmente justificáveis, afinal eu
era autônomo, dependia do mercado de pequenas obras e pequenos consertos para
angariar meus trocados.
Aquele
apresentador gordo e mal educado já havia começado o seu programa, a
interromper os seus entrevistados e a falar com uma autoridade forçada sobre
todos os assuntos suscitados. Vi que era aquilo outra coisa que eu não
conseguia compreender: aquele senhor irritante continuar há tantos anos a
invadir a minha intimidade e a de tantas outras pessoas todos os domingos. A sociedade
estava cheia de muitos outros exemplos como aquele; tantos que eu não poderia
listá-los.
Logo me veio à
cabeça uma pesquisa científica da qual eu não tenho muita certeza sobre a sua
credibilidade ou mesmo sobre sua existência, mas explicava um pouco essa
mentalidade ilógica ou pelo menos tentava, se é que, como já disse, realmente
existia. Sobre tal pesquisa (história) temos as seguintes palavras chave:
macaco, banana, escada e jato d’água. Então, se já ouviu falar dessa pesquisa,
vá direto ao 5º parágrafo a seguir.
Um grupo de chimpanzés foi colocado numa jaula,
no teto da qual foi pendurado um cacho de bananas. Os pesquisadores, que para
mim era um bando de desocupados, colocaram uma escada debaixo daquele cacho e
quando um dos macacos tentava subir para apanhá-lo, os demais recebiam fortes
jatos d’água, o que os fez, a partir de certo ponto, começar a agredir todos
que tentavam subir para apanhar as bananas.
Num dado momento os pesquisadores pararam de
lançar os tão incômodos jatos d’água, mas assim que um dos chimpanzés tentava
subir a escada os outros o surravam, até que nenhum deles se arriscava mais a
alcançar o cacho.
Um a um eles começaram a ser substituídos e,
tão logo o novo membro começava a subir aquela escada, recebia uma bela sova
dos demais sem saber exatamente o motivo, até que ele mesmo passava a bater nos
novos companheiros de jaula que eram colocados em substituição aos primeiros.
Foi assim até que não restou naquela jaula
nenhum dos macacos que originalmente recebeu o jato d’água, mas a prática de
surrar quem quer que tentasse subir aquela escada já estava de tal forma
arraigada naquele grupo que todos os seus membros o faziam sem fazer idéia do real
motivo que os levava a fazê-lo. A única explicação que eles tinham pro seu
próprio comportamento provavelmente era “não sei o porquê, só sei que sempre
foi assim”.
Acho que era
essa a explicação que eu poderia dar sobre a forma como me portava diante
daquele domingo ensolarado. Eu estava em casa, completamente vestido, apesar de
sozinho e me derretendo num calor de 32º, com a tv ligada num canal alienante
qualquer, ouvindo um gordo a falar alto e a interromper seus entrevistados. Naquele
dia eu almoçara sozinho, mas estava triste porque devia almoçar em família,
coisa que eu não tinha, afinal era domingo e eu devia ter almoçado com uma,
qualquer uma, nem que fosse a família do síndico de bigodes pretos, se é que
eles me aceitariam em seu palacete.
O dia
radiante, que passava lento ao som da algazarra feita pelas crianças no
playground, era mais um domingo na minha vida sozinha, fria, e digo isso em
plena consciência de que faziam 32º Celsius, medíocre e tragicômica.
Não sabia
exatamente o motivo de escrever naquele diário, nem por que aquele caderno
recebia aquele nome, se dificilmente alguém escrevia diariamente nele. Eu mesmo
demorara cerca de 30 anos para me aventurar de novo entre suas linhas azuis.
Estranhava o domingo ser considerado fim de semana, se em qualquer calendário
ele é o primeiro dia da semana, e não sabia nem mesmo por que eu dediquei
tantas linhas a esse choramingo inútil, o qual não seria lido por ninguém,
afinal, diários são coisas íntimas, e o que se escreve nele fica guardado
apenas para quem o escreveu. Então por que escrever? Talvez um dia alguém leia,
e por isso eu escreva como se tivesse um interlocutor, mas só “talvez”.
A razão de
minha rotina e de todos que conheço se pautar em coisas tão ilógicas eu não
sei, aliás, a única certeza que tenho é que eu não sei, só sei que sempre foi
assim.
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