sábado, 10 de agosto de 2013

Viagem entre as estrelas




Havia nos bolsos do jovem terráqueo, cerca de cinco moedas intergalácticas, além de alguns documentos e um ticket de passagem para a última nave interespacial a sair no segundo dia do quinto ciclo lunar terrestre, quadragésimo sexto período crepuscular da 7ª lua do grande corpo celeste conhecido como Thiremir, o planeta mais próximo da estrela Cártase 32, planeta onde ele se localizava em exílio desde que a Imperatriz Eterna tomara em golpe o Púlpito de Cristal, centro de poder dos Sete Universos, através de uma manobra que, ao contrário do que tem se pregado, entrará na história como um dos maiores desastres políticos desde o malfadado levante dos planetas gêmeos de Manarat.
A nave com capacidade para mil trezentos e vinte passageiros e carga superior a mil e setecentas toneladas sairia em poucos instantes e o pobre rapaz não tirava os olhos dos letreiros luminosos que anunciavam de tempos em tempos o resultado dos embates travados no frio espaço que se estendia anos luz da grande construção pressurizada em que se encontrava, mas perto o bastante para fazê-lo tremer diante da expectativa pela convocação iminente ao serviço militar estendido, que consistia em chamar à ativa todo aquele que fora dispensado do serviço militar regular a menos de quatro anos.
O Multiverso se tornara apinhado de grandes batalhas e acalorados debate na Câmara dos Sete Reinos; mas nada disso era maior do que o que esperava o jovem terráqueo justamente em seu planeta de origem. Ele temia mais do que o serviço dentro dos grandes cruzadores, o desfecho de sua viagem. A própria aterrissagem e os caminhos áridos que percorreria enfurnado em um dos transportadores terrestres, até um dos poucos locais preservados daquele planeta desde a última grande guerra o fazia sentir dores nos ossos e a não tirar as mãos dos bolsos de seu fugaz casaco de pele de tridon. Apesar de toda a apreensão, havia em seu olhar um misto de contentamento inenarrável, e nos seus lábios uma pequena alusão a um sorriso contido, mas sincero. Ele sabia o que o esperava e a sua inquietação denotava todo o seu despreparo.
O trabalho nas minas o fizera parecer mais velho do que realmente era. Na verdade, não passava de um garoto que aprendera a se virar logo cedo, e que vira todo o seu vilarejo ser destruído quando forças fiéis à Imperatriz Eterna suspeitaram de que ali se abrigava um dos rebeldes que lutavam pelo restabelecimento da ordem anterior. Ele próprio pretendia ser um dos muitos que pegam em armas, juntando-se aos exército instalados nos planetas congelados da estrela anã de Palora; certamente, um ofício melhor do que o de mineiro, trabalhando para a sanguinária déspota. O que mais corroia o coração de nosso jovem herói era saber que havia se apaixonado justamente pela filha mais jovem da mulher que massacrava reinos inteiros com seu esbravejar maldito nas audiências e plenárias na Câmara dos Sete Universos. A conhecera quando esta, em uma de suas conhecidas aventuras, adentrara clandestinamente e sem o conhecimento da mãe em uma nave interespacial, fazendo o caminho entre a Terra e a Sétima Lua de Thiremir.
Neste dia, ele queria pegar logo a nave e adentrar o buraco de minhoca que conduzia até o seu planeta natal e, despojado de todo o medo que o tomava, enfrentar a realidade como o grande homem que ele sabia ser.
Quando o sinal de embarque tocou, ele já se encontrava de pé. Viu passar diante de si alguns reptilianos mal encarados, três ou quatros plasmóides — não os distinguia bem um do outro, devido ao seu aspecto gelatinoso, nem tampouco quantos haveriam de ser —, as lindas Pértipas e seus elegantes acompanhantes, todos se dirigindo para o mesmo Universo, num vôo de muitas escalas, como o é o de classe econômica. Embarcou e o frio na barriga só aumentava. A seu lado uma terna companhia, mas não é de interesse ao presente relato apesar de sua grandiosidade, sabedoria e encanto.
Os grandes motores de nêutrons foram ligados — extremamente silenciosos — perceptíveis apenas devido à tremulação das imagens ao redor, proporcionada pelas ondas expelidas pelas turbinas da nave. Uma gigantesca porta de metal, extremamente grossa foi fechada atrás da nave, e a redoma de vidro foi aberta à sua frente; a nave levantou vôo lentamente deixando para trás a base de lançamento localizada na última camada atmosférica da Sétima Lua. Já a uma boa distância do empuxo gravitacional das luas e em especial de Thiremir, os motores cyberespaciais foram ligados, o levando até os grandes arcos do Buraco de Minhoca do Quadrante Cinco do Septuagésimo Terceiro Corte Einsteniano do Multiverso. As pernas trêmulas mal se continham até o momento em que foram fechadas todas as janelas da nave a fim de proteger os olhos dos viajantes da grande rajada de cores proporcionada pelas estrelas passando a altíssima velocidade e tão próximas da nave. Cerca de dez horas terrestres e a nave chegou à Via Láctea e após algumas paradas seguiu para a Terra.
O coração do jovem parecia suportar uma grande pressão, bombeando sangue freneticamente, como se o perigo rondasse o seu caminho. Mas a beleza do que viria após o desembarque e a viagem pelas estradas congeladas daquele que até pouco tempo atrás fora um dos mais prósperos planetas do Segundo Universo, não poderiam ser ilustradas ou mesmo resumidas em um simples relato.
Enquanto olhava as montanhas a reluzir à luz do Sol, firmes e imponentes erguendo-se atrevidas contra o céu alaranjado e salpicado por aves glaciais, ele imaginava-se um grande herói cruzando em um trenó as planícies geladas, acompanhado apenas de uma arma de plasma, prestes a tomar de assalto mais uma das fortalezas da Imperatriz Eterna — Ah, esses malditos pensamentos que tem tomado conta de suas horas de ócio!
Mais alguns instantes e ele se via de pé com sua parca bagagem e seu fino casaco, enfrentando um frio cortante, frente a uma grande muralha que se estendia para além do alcance de sua visão. Apenas um grande portão e alguns passos o separavam do fim de sua jornada. Um misto de contentamento, de medo, de incredulidade o mantinha de pé e relutante, açoitado pelas frias rajadas de vento daquela manhã. E como que por um passe de mágica, a pesada peça de metal maciço se abriu revelando atrás de si um suntuoso palácio, precedido por uma escada no final da qual estava, com um sorriso doce, a filha da Imperatriz Eterna.
O nosso jovem herói subiu as escadas apressado e passou pela bela filha rebelde com a qual trocou apenas um olhar, sobre o qual haveria muito a dizer, mas que em si já resumia tudo a ser dito. Ela o seguiu apressada e o tomou pelo braço, conduzindo-o a um quarto escuro, silencioso e de temperatura agradabilíssima, em contraste àquela experimentada no exterior do palácio. Ela sorriu e ele com os olhos banhados em lágrimas; mas essas eram lágrimas de alegria, carregadas com todo o amor que ele poderia experimentar e dar em toda a sua existência. Viajara por inúmeras galáxias, com algumas poucas moedas em seu bolso, para ter diante de si, a mais bela e mais valiosa de todas as imagens, fruto de um amor entre um pobre exilado e uma filha rebelde e igualmente exilada; ali estava diante do jovem viajante espacial, a mais bela estrela de todos os universos conhecidos, consubstanciada em um bebê frágil e indefeso: a sua filha querida.

Feliz dia dos Pais! Deste e de todos os universos.

domingo, 23 de junho de 2013

Carta de um revolucionário



Querida Maria,


Nessas linhas singelas venho expressar a minha saudade e peço-lhe logo desculpas pelo tempo em que não lhe envio uma notícia sequer. É triste admitir, mas o tempo exíguo que nos é concedido nesses dias modernos tem nos tornado frios e distantes.
Acredito que nesse momento esteja tentando entender o porquê de eu ter lhe escrito uma carta ao invés de um telefonema ou mesmo um e-mail. A verdade é que esse seu irmão sempre foi um apaixonado pelos costumes antigos, as belas expressões de sentimento e carinho, e nada melhor que uma carta escrita a próprio punho, o entrelaçar das linhas de tinta sobre o papel fazendo nascer letras e a externar os pensamentos, as memórias, os doces sentimentos.
Entretanto, querida Maria, escrevo hoje para apaziguar o seu coração e, sobretudo, o coração de nossos pais.
Primeiramente, adianto-lhes que estou bem e que gozo da mais perfeita saúde. O único mal que me aflige é a saudade que sinto de nossas tardes à varanda conversando sobre política, economia, filmes, livros, e tudo que há de mais “intelectual”.
Mas sem muitos rodeios, vamos ao que de mais importante devo externar nessa folha de papel cuidadosamente arrancada do meu caderno de Filosofia Jurídica, a qual não fará a mínima falta em minhas aulas de sexta-feira, afinal, como um filósofo eu sou um ótimo cozinheiro.
Os jornais têm feito imensa cobertura do que acontece por todo o país, mas sinto-me na obrigação de colocar a você e a nossos pais a par de tudo que acontece hoje, pelo menos, daquilo que acontece próximo a mim, sob o olhar de alguém do povo, obviamente parcial, mas livre de opiniões compradas.
O país está em convulsão e por todos os cantos ouvimos os gritos contra a corrupção e contra toda a corja de bandidos engravatados que se reúnem em torno de um único objetivo: se locupletar às custas do dinheiro público; dinheiro esse arrancado dos nossos bolsos e de nossos compatriotas. Por todo lado levantam-se bandeiras contra o câncer que toma conta de nossa sociedade, escondido atrás do sorriso falso de propagadores de múltiplas falácias, das alianças feitas entre nossos políticos e os grandes empresários, adoradores de Baco, vivendo de orgias e de escândalos financiados por nosso suor e sangue.
Esse gigante, querida Maria, esse nosso lindo país arde em febre, treme e se contorce em berço esplêndido.
E como dói, minha querida irmã, ver o mal corroer o nosso organismo, corromper nossos pensamentos e nos fazer chorar e gritar de dor em hospitais abarrotados de doentes e de desvios de verba! Sim, os nossos hospitais pululam de pobres miseráveis deitados em corredores, vomitando suas entranhas, nas quais escorregam médicos mal remunerados e auxiliares de enfermagem a prescrever receitas como se médicos fossem.
Esse é o nosso país.
Mas essa horda de políticos mal intencionados agora se vê acuada em seus gabinetes luxuosos, rodeada por seu pomposo exército de bajuladores, enquanto o povo vai às ruas e grita palavras de ordem. Diversas são as reivindicações, porque diversas são as mazelas. O nosso país padece de diversos males e em sua grande parte, senão em sua inteireza, advindo das ações de nossos pseudo-representantes. Devo indagar: a quem representam esses tão odiados senhores e senhoras que indiretamente tem matado milhões de brasileiros? Vivem às custas da doença de nosso povo, dos horrores aos quais estão sujeitos os nossos irmãos nas favelas e nos grandes rincões desse torrão abandonado e tão maltratado que é o nosso país.
Querida irmã! Faço parte da revolta que se instaura em todo canto desse país. Faço parte dos jovens que têm saído às ruas a entoar nosso hino nacional, a fazer tremular a bandeira de cores verde, amarela, azul e branca, em meio a tantas outras bandeiras, que se erguem imponentes contrastando com a nuvem branca das bombas de efeito moral que fazem chover sobre nossas cabeças.
Tenho olhado direto nos olhos do monstro hobbesiano, que tenta nos inebriar com o cheiro de seu hálito podre, repleto de seus discursos vazios e de suas falsas promessas. Tenho em meu corpo as marcas que me infligiram seus lacaios. Mas a dor que sinto em meu corpo castigado não é maior que a dor que toma conta de minha alma.
O cheiro de liberdade nas ruas, diante dessa falsa democracia, logo se vê suprimido pelo cheiro de gás lacrimogênio e do spray de pimenta.
Nossos irmãos se vestem de Estado e nos atacam como se atacassem a um inimigo feroz. Estamos armados apenas pela indignação, pelo amor por nosso povo, pelo sonho de um país melhor, e marchamos pelas ruas de nossas cidades empunhando bandeiras e ideais. Mas os nossos governantes, aqueles mesmo que sobem aos palanques e propagam seus discursos eleitoreiros, nos vêem como Dom Quixote frente aos moinhos de vento numa luta inútil contra um inimigo inexistente. Não! Ele existe e está aí a propagandear o tão maquiado crescimento de nossa economia e a lúdica ascensão de nossos miseráveis à classe média. Queremos que nos vejam como povo soberano frente a eles, os responsáveis por concretizar a nossa vontade, o que obviamente não consiste na banalização da vida alheia, do subjugo dos mais fracos, da institucionalização de preconceitos, da promoção da blindagem aos corruptos.
Querida irmã, enquanto chovem bombas sobre o povo de bem, nossos representantes se banqueteiam de nossa carne, de nossas almas.
Enquanto nós lutamos nas ruas, eles assistem aos jogos em seus palácios cravejados de diamantes.
Peço-lhe irmã, que me deseje coragem e que ore por mim, pois a luta deve continuar, assim como o nosso espírito de mudança. Peço-lhe ainda, minha querida irmã, que tranqüilize nossos pais, porque se luto é porque tenho a convicção de que faço o certo e não quero continuar a ver meu povo morrer em hospitais, os nossos adolescentes semi-analfabetos e nossas ruas cheias de mendigos.
A quem interessa tanta gente ignorante, sem o mínimo de formação cultural, acrítica e passiva? Justamente a eles, irmã. Aos inimigos do povo, os nossos políticos e suas alianças escusas.
Eu lutarei, sofrerei em meio às bombas e às balas de borracha, porque esse é o meu país e não o país da Copa ou o país de Ali Baba e seus milhares de ladrões. Gritarei em meio à fumaça que esse é o povo que não mais jaz em berço esplêndido, mas se arrasta pelas trincheiras da revolução, pacífica e ordeira, que apenas se defende da ganância de nossos políticos. Gritamos “não” à chamada legitimidade da violência estatal.
O nosso país convulsiona, irmã.
Não dê ouvidos à imprensa, o status quo a é favorável.
Abraços, daquele lhe ama muito.

Ps: A repressão só me trará maior revolta e forças para marchar em meio à fumaça e às explosões.

domingo, 12 de maio de 2013

Lágrimas no Tibet





No topo das montanhas geladas do Tibet, onde os raios de sol surgem como alento aos corações solitários de errantes e alpinistas, um jovem monge chorava sentado sobre os escombros de um velho mosteiro, acompanhado de um lado por um cão e do outro por uma velha cabra, ambos com seus olhos tristes e singelos, mirando ao longe a paisagem de picos gelados a emergir em meio ao grande e maciço bloco de nuvens, se assemelhando a ilhas em um oceano branco.
O jovem tinha em uma das mãos um pequeno violino sem cordas, no corpo do qual se podia ver escrito em runas antigas uma pequena frase que traduzida de forma literal dizia: “Onde a paz encontra o coração do homem, a natureza se ajoelha em reverência”; outros, porém, poderiam traduzi-la de uma forma um tanto diferente, mas não comprovadamente incorreta: “Este pertenceu a um rei bastardo”. O violino era de uma beleza inigualável, de cor extremamente negra, salpicado de pontos brancos, como a noite repleta de estrelas.
Aquele choro silencioso vindo dos olhos paradoxalmente alegres num rosto marcado pelo sorriso sincero daquele jovem parecia apenas um derramar sem propósito de lágrimas, as quais escorriam frias pelas suas bochechas rosadas até caírem como pequenas contas de cristal no desfiladeiro no qual fora construído e em tempos imemoriais desmoronara o mosteiro. Tão logo tocavam a terra alguns metros abaixo, transformavam-se em filetes de água escorrendo por entre as pedras, deslizando atrevidos como pequenas serpentes que iam se encontrando uma a uma até chegarem ao meio da montanha, onde tomavam maiores proporções. Seguiam formando um pequeno riacho que ia se alargando até tomar a forma de um grande rio caudaloso que descia as encostas, dessa vez como um grande dragão a serpentear ruidoso a terra dura e gelada que era o Tibet. Logo margeava a base de outras montanhas, encontrava-se com outros rios vindos sabe-se lá de onde, provavelmente das lágrimas de um outro jovem budista com seu rosto paradoxalmente feliz e rosado, no topo de uma outra grande montanha. Formavam, assim, um mar de lágrimas, espalhando-se cheio de vida por terras ainda mais distantes, cobrindo grandes desertos.
Aqui e ali podiam ser vistos pequenos barcos onde se amontoavam famílias a buscar refúgio nas ilhas que emergiam do mar de lágrimas dos pequenos monges budistas. Diversas delas nasciam quase que instantaneamente, repletas de grandes árvores frutíferas e animais de todas as espécies que vinham saudar com folhas de coqueiro os homens, mulheres e crianças que atracavam em suas praias.
A águia voava no céu azul da manhã iluminada, fazendo pequenos círculos enquanto via logo abaixo o seu reflexo no grande oceano de lágrimas, que era límpido e sereno como a alma de uma criança.
Houve um terremoto no ocidente e ao longe, com os olhos argutos de um lince e o grande discernimento das corujas das estepes, podia-se divisar uma massa de altivos soldados em marcha. Um exército que se erguia portando grandes e pesados escudos de prata e manejando lanças de um brilho ímpar. Na fronte de cada um daqueles homens via-se desenhada uma flor de lótus ou um hibisco vermelho. Nos seus corações a chama do espírito guerreiro agora dava espaço à chama dos dias de paz. Num movimento sincronizado pararam à beira de um lago de águas serenas e douradas e lançaram suas vestes, seus escudos e suas lanças e permaneceram cobertos apenas por peles e observaram a águia que por sua vez também os observava.
O pequeno monge budista não os via, sentado sobre os escombros do mosteiro milenar no topo de uma montanha no Tibet. O que ele via era um maciço de nuvens, no meio do qual emergiam picos e mais picos de montanhas geladas.
Agora o oceano de lágrimas cobria dois terços da terra antes seca e sem vida, outrora marcada por encostas e escarpas, desfiladeiros e planaltos, e todas as grandes e pequenas formações geológicas, todas elas desprovidas de vida, naquilo que num passado distante se convencionou chamar de Terra.
Dos olhos do pequeno monge as lágrimas escorriam puras e sinceras, firmes e contínuas, indiferentes à alegria dos olhos de onde surgiam.
O cão e a cabra agora dormiam ressonantes e ternos.

sábado, 11 de maio de 2013

Tique Taque - Uma triste homenagem ao dia das mães



Eu tinha a sensação perturbadora de receber uma martelada no cérebro a cada tique-taque do relógio de camelô pendurado na minha sala de estar. Era um daqueles relógios de plástico, enfeitado com desenhos e que tocava uma música a cada hora do dia; a mais triste e melancólica era a da meia noite ou meio dia, afinal havia apenas 12 músicas diferentes, mas como a meia noite é sempre um prato cheio a seus maiores medos, aquela badalada do meio dia soada à zero hora adquiria características e acordes muito mais funestos.
O silêncio na sala de estar era quebrado apenas por aquele tique-taque irritante e pelo som que fazia a minha perna ao roçar no sofá, enquanto eu me entregava ao tique causado pelo meu nervosismo, subindo e descendo meu calcanhar direito num movimento repetitivo e contínuo, enquanto tentava, em vão, ler o jornal do dia anterior. Não lia. Apenas corria os olhos pela página, reconhecendo uma e outra palavra, numa tentativa desesperada de me ver livre da ansiedade que tanto machucava o meu ser.
Aqueles minutos iam se arrastando tão lentos que eu poderia tocar o tempo.
Olhava vez ou outra a foto sobre a mesinha de centro na qual eu me encontrava sorridente ao lado de minha mãe, enquanto segurava minha pequena filhinha no colo. A angústia ia aumentando e o meu coração se juntava ao som do relógio para quebrar o silêncio que se espraiava por todo o ambiente. Aliás, era um ambiente bastante exíguo, o qual eu tentava fazer parecer um lar, decorando-o com flores e cortinas brancas, a foto de meu velho papaizinho ao lado da imagem de Santa Luzia, próximos à janela que dava de frente para um prédio enorme e velho, o qual não havia sido acabado por algum problema em sua estrutura e ficava ali, a exibir a sua carcaça, desnuda e enegrecida pelo tempo, com ratos e baratas, perambulando em seu interior. Animais asquerosos que resolviam fazer suas visitas diárias ao nosso apartamento.
Os dias eram felizes desde que estivéssemos unidas, mas eram duros, extremamente difíceis.
A angústia da espera me fazia transpirar e um frio percorria minha espinha, enquanto o jornal em minhas mãos vibrava embalado pelo meu tique nervoso. Sentia meu coração bater cada vez mais forte, palpitando e reverberando através de meu peito, chegando à minha garganta, onde um nó me fazia conter o choro iminente. Sentia-me insegura e desamparada, principalmente por estar sozinha diante daquela situação vexatória, a qual em poucos instantes eu iria protagonizar.
Assim, eu esperava com os olhos vermelhos, mas secos como o deserto. Naquele momento as lágrimas me fugiam e eu me apegava a isso, acreditando-me demasiadamente forte. Eu não queria estar ali, mas somente eu podia vivenciar aquilo tudo. Poupara minha mãe e minha pequena filhinha, conseguindo que se ausentassem por dois dias na casa de alguns parentes distantes numa cidade vizinha.
Minha mãe, já muito doente, assim como eu, diante de sua grande integridade e altivez, apesar de todas as adversidades, adiantaria o dia de sua morte e levaria consigo metade de minha esperança de dias melhores se ali estivesse naquele fatídico dia. Ela me apoiara e cuidara de mim desde a morte de meu pai naquele acidente, do qual eu guardo apenas duas recordações: o som do metal rangendo contra metal num estrondo de milésimos de segundo, mas que perpetua na minha mente como se tivesse acontecido em minutos angustiantes, relembrados em câmera lenta, e uma cicatriz em minha perna esquerda. Apenas meu bom e velho pai se vitimara e hoje zelava por nós no céu distante.
Absorta em meus pensamentos e em minha tensão mal contida, voltei a mim no momento em que o silêncio ensurdecedor da sala de estar foi interrompido pelo som de batidas na porta.
Levantei-me a muito custo, já que minhas pernas vacilavam e meu corpo inteiro tremia diante do terror que experimentava. Arfei o máximo de ar que pude, endireitei meu corpo, engoli a seco toda a angústia que apertava minha garganta por meio daquele nó ao mesmo tempo em que colocava o jornal sobre a mesa de centro, ao lado de minha mãe, minha filha e eu, e caminhei em direção à porta, insegura e com uma vontade quase sufocante de gritar a plenos pulmões e desabar em choro ali mesmo.
Olhei mais uma vez a foto de meu pai, de minha mãe e minha filha e, até mesmo, para o quadro de Santa Luzia.
Mais uma batida, quase que ao mesmo tempo em que eu girava a chave e segurava a maçaneta.
Quando abri aquela porta, vi diante de mim um senhor que não aparentava mais de 40 anos, com a barba por fazer, mas cheirando a loção pós-barba, os olhos miúdos e a testa reta, extremada abaixo por sobrancelhas grossas e pesadas e acima por um cabelo extremamente liso, com uma ou outra mecha mais rebelde caindo-lhe sobre a testa ao fugir de seu penteado estilo social. Vestia um terno azul marinho e tinha os sapatos impecavelmente engraxados, e em uma das mãos pendia uma maleta, a qual me trazia demasiada ojeriza, pois eu sabia exatamente o que guardava.
— Boa tarde, senhora! — foram suas palavras.
Eu apenas me permiti sorrir levemente, mas fora um sorriso sem convicção, vazio e temeroso, que não demorara mais do que algumas frações de segundo, talvez imperceptível.
— Acho que sabe o motivo de minha visita — ele continuou.
Meu coração disparou e eu não pude conter a lágrima que desafiou minha indiferença forçada; e minha porca atuação se desfez em menos de 10 segundos após a primeira troca de olhares com aquele senhor. Eu não podia admitir a fraqueza nem ao menos diante da derrota.
Naquele momento ele olhou por sobre meus ombros e viu minha sala com seus próprios olhos.
Na certa ele pôde reparar os móveis escorados aqui e ali por calços, viu as paredes de minha sala ainda em alvenaria nua, o mofo verde ao lado de meu sofá, este com rasgos enormes, a mesa de centro improvisada com tijolos e um pedaço de compensado, o cesto lotado de caixas de remédio e a televisão de 14 polegadas. Acredito que possa ter visto até mesmo uma ou outra barata, muito provavelmente faminta, pois nem eu mesma tinha o que comer naquela tarde. E certamente pôde ver a foto de meu pai, de minha filha, de minha mãe, de Santa Luzia e a minha própria foto sorridente.
Ele abriu a maleta e eu levei as mãos à boca para segurar o grito de dor, retirou de dentro uma folha de papel e pediu que eu a assinasse, e disse já com a voz embargada:
__ Em três dias virão os conselheiros tutelares e a levarão. Por enquanto — aí ele fez uma pausa, pois olhava no fundo dos meus olhos e de alguma forma se compadecia; e continuou — fique com ela e não se esqueça que tudo um dia pode mudar.
Eu não pude dizer uma única palavra e depois de assinada aquela folha de papel, eu a entreguei aquele senhor e fechei a porta diante dele, enclausurando-me em meu recanto de dor.
Caí de joelhos e chorei lágrimas que arderam minha face.
Agora os dias seriam ainda mais duros e difíceis, pois não estaríamos mais unidas.

Tique-taque, continuava o relógio na sala de estar fria e vazia.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sempre foi assim



20 de março de 2011, domingo.
Parecia mais um dia comum, e era realmente um dia comum. Era mais um domingo ensolarado e as crianças brincavam no playground, fazendo uma algazarra tamanha que se confundiam a um bando de pardais a se fartar de arroz; a TV estava, como de costume, ligada em um canal qualquer e eu não tinha a mínima idéia do que fazer de interessante.
Naquela tarde eu me deitei no sofá em frente àquela televisão tagarela e a minha completa “paixão” por programas dominicais me fez desviar meus olhos para as manchas de mofo que se espalhavam imponentes e em formas diversas no teto do meu apartamento. Vi flores, elefantes, vi inclusive figuras famosas, como atores e políticos inidôneos e políticos inidôneos, ou seja, políticos. O resultado daquela contemplação, daquela imaginação fluida, como não acontecia há anos, foi lembrar-me de minha infância e resolver revirar as minhas coisas antigas, minhas pequenas recordações que estavam guardadas em um pequeno baú que havia pertencido a meu avô e que eu recebera ao completar 10 anos de idade, dia da minha primeira comunhão.
Revirando aquelas relíquias, encontrei o meu antigo diário e a primeira coisa que me veio à cabeça não foi ler suas páginas amareladas, e sim, apanhar uma caneta e começar a escrever a primeira coisa que viesse à minha cabeça.
Numa fração de segundos comecei a divagar sobre algo que sempre me intrigou, eu acho, ou melhor, provavelmente tenha me intrigado por muito tempo, ainda que intimamente, no âmago de minha inconsciência. Antes de qualquer coisa, resolvi escrever essas palavras que antecederam. Agora sigo à minha explanação:
É difícil entender a lógica ilógica das coisas, tão difícil quanto tentar entender os motivos que levariam uma pessoa a escrever sobre algo tão desinteressante. Acredito que não seja tão desinteressante, mas num domingo ensolarado, não haveria de ser tudo desinteressante, a começar pelos programas de TV e diários de menino?
Estava completamente vestido: chinelos, shorts e camiseta, apesar de estar suando feito uma chaleira. A minha vontade era de estar nu, afinal eu estava sozinho em casa, aliás, eu vivia sozinho em casa; e além do mais, nunca era visitado, exceto quando eu atrasava o pagamento do aluguel. O síndico, um homem gordo e com um bigode preto que escondia boa parte sua boca, deixando à mostra apenas o lábio e dentes inferiores, morava no andar de baixo e mês sim, mês não, via a necessidade de me fazer uma visita sem um motivo específico, mas o qual eu conhecia, não por suas próprias palavras, mas eu bem sabia que se dava pelo atraso de dois ou três dias, os quais eram totalmente justificáveis, afinal eu era autônomo, dependia do mercado de pequenas obras e pequenos consertos para angariar meus trocados.
Aquele apresentador gordo e mal educado já havia começado o seu programa, a interromper os seus entrevistados e a falar com uma autoridade forçada sobre todos os assuntos suscitados. Vi que era aquilo outra coisa que eu não conseguia compreender: aquele senhor irritante continuar há tantos anos a invadir a minha intimidade e a de tantas outras pessoas todos os domingos. A sociedade estava cheia de muitos outros exemplos como aquele; tantos que eu não poderia listá-los.
Logo me veio à cabeça uma pesquisa científica da qual eu não tenho muita certeza sobre a sua credibilidade ou mesmo sobre sua existência, mas explicava um pouco essa mentalidade ilógica ou pelo menos tentava, se é que, como já disse, realmente existia. Sobre tal pesquisa (história) temos as seguintes palavras chave: macaco, banana, escada e jato d’água. Então, se já ouviu falar dessa pesquisa, vá direto ao 5º parágrafo a seguir.

Um grupo de chimpanzés foi colocado numa jaula, no teto da qual foi pendurado um cacho de bananas. Os pesquisadores, que para mim era um bando de desocupados, colocaram uma escada debaixo daquele cacho e quando um dos macacos tentava subir para apanhá-lo, os demais recebiam fortes jatos d’água, o que os fez, a partir de certo ponto, começar a agredir todos que tentavam subir para apanhar as bananas.
Num dado momento os pesquisadores pararam de lançar os tão incômodos jatos d’água, mas assim que um dos chimpanzés tentava subir a escada os outros o surravam, até que nenhum deles se arriscava mais a alcançar o cacho.
Um a um eles começaram a ser substituídos e, tão logo o novo membro começava a subir aquela escada, recebia uma bela sova dos demais sem saber exatamente o motivo, até que ele mesmo passava a bater nos novos companheiros de jaula que eram colocados em substituição aos primeiros.
Foi assim até que não restou naquela jaula nenhum dos macacos que originalmente recebeu o jato d’água, mas a prática de surrar quem quer que tentasse subir aquela escada já estava de tal forma arraigada naquele grupo que todos os seus membros o faziam sem fazer idéia do real motivo que os levava a fazê-lo. A única explicação que eles tinham pro seu próprio comportamento provavelmente era “não sei o porquê, só sei que sempre foi assim”.

Acho que era essa a explicação que eu poderia dar sobre a forma como me portava diante daquele domingo ensolarado. Eu estava em casa, completamente vestido, apesar de sozinho e me derretendo num calor de 32º, com a tv ligada num canal alienante qualquer, ouvindo um gordo a falar alto e a interromper seus entrevistados. Naquele dia eu almoçara sozinho, mas estava triste porque devia almoçar em família, coisa que eu não tinha, afinal era domingo e eu devia ter almoçado com uma, qualquer uma, nem que fosse a família do síndico de bigodes pretos, se é que eles me aceitariam em seu palacete.
O dia radiante, que passava lento ao som da algazarra feita pelas crianças no playground, era mais um domingo na minha vida sozinha, fria, e digo isso em plena consciência de que faziam 32º Celsius, medíocre e tragicômica.
Não sabia exatamente o motivo de escrever naquele diário, nem por que aquele caderno recebia aquele nome, se dificilmente alguém escrevia diariamente nele. Eu mesmo demorara cerca de 30 anos para me aventurar de novo entre suas linhas azuis. Estranhava o domingo ser considerado fim de semana, se em qualquer calendário ele é o primeiro dia da semana, e não sabia nem mesmo por que eu dediquei tantas linhas a esse choramingo inútil, o qual não seria lido por ninguém, afinal, diários são coisas íntimas, e o que se escreve nele fica guardado apenas para quem o escreveu. Então por que escrever? Talvez um dia alguém leia, e por isso eu escreva como se tivesse um interlocutor, mas só “talvez”.
A razão de minha rotina e de todos que conheço se pautar em coisas tão ilógicas eu não sei, aliás, a única certeza que tenho é que eu não sei, só sei que sempre foi assim.

sábado, 27 de abril de 2013

Uma fatia de queijo sem veneno, por favor.


— Câncer!
O homem empalideceu de imediato enquanto seu corpo era tomado por uma onda de tremor, quase uma convulsão a estampar em seu rosto retesado o medo e o espanto que o tomara por completo. Podia-se ver à luz artificial de seu quarto as suas pupilas, antes dilatadas, cerrarem-se no instante em que aquela palavra percorrera o ar empoeirado e penetrara seus ouvidos. Afastando-se com três passos curtos para trás, esbarrou-se na cadeira de mogno recostada num canto ao lado da porta, desabando-se sobre ela como se seu corpo não tivesse mais vida, recostando seu dorso pesadamente no seu encosto, quase o arrancando. Mas os seus olhos compenetrados e a sua boca entreaberta a soltar um chiado quase inaudível, como se não soubesse exatamente quais palavras pronunciar diante de sua própria perplexidade, limitando-se apenas a chiar, denunciava a vida que ainda existia naquele corpo repentinamente gélido e trêmulo. A verdade é que não sabia exatamente o que dizer ou mesmo se deveria se aventurar a pelo menos balbuciar algo. Não sabia nem mesmo se teria perdido a sanidade.
— Câncer! É exatamente essa palavra — repetiu o pequeno rato no canto nu daquele quarto empoeirado na Rua Sete de Setembro n° 30, na cidade de Belo Horizonte, fazendo seus bigodes compridos balançarem no momento em que pronunciava aquelas palavras de forma exasperada e com um olhar agressivo e ao mesmo tempo tomado pelo medo, enquanto seu diminuto coração, já bastante ligeiro naturalmente, se mostrava extremamente acelerado por causa da perseguição que antecedera aquele momento.
Encontravam-se os dois, homem e rato, em cantos opostos daquele cômodo como boxeadores em um ringue esperando o soar do gongo para reiniciar a troca de jabs e diretos; dois gladiadores a se entreolhar, cada um a seu modo, arfando todo o ar possível, a tomar o fôlego que tanto lhes fazia falta, um pelo esforço depreendido e o outro recuperando o ar que lhe havia sido tomado após a estupefação que lhe causara o acontecido.
O homem de meia idade ainda segurava a vassoura como se esta fosse uma espada ou uma lança diante de um grande inimigo que o sobressaia em coragem naquele momento; coragem esta, que assumira diante da morte iminente, uma vez que, por mais trêmulo e empalidecido que estivesse aquele homem, a força bruta lhe dava vantagem sobre o corpo ágil, porém frágil daquela criaturinha.
Por que fica aí sentado a me olhar enquanto segura essa porcaria de vassoura? — esbravejou o rato. Por que não me desfere logo esse golpe e acaba logo com minha vida miserável? Fica aí com esse olhar de espanto, essa boca aberta e essa cara esbranquiçada e não toma nenhuma iniciativa. Você me enoja!
O homem, tentando recobrar os sentidos, reorganizava seus pensamentos e, ainda trêmulo e tomado pelo medo, começou a balbuciar sua resposta, inicialmente apenas uma variação do chiado que emitia até então, e, aos poucos, palavras audíveis e mais palpáveis:
— N... nã... não tenho a mínima idéia do que possa estar acontecendo aqui. Como você pode falar?
— Da mesma maneira que você — retrucou o rato. E aproveito a oportunidade para repetir que é para mim e para o restante desse planeta maculado pela sua presença, um câncer que deve ser extirpado.
O interlocutor daquela criatura eloqüente agora voltava a tomar a sua cor habitual, mas ainda permanecia trêmulo e não ousava fazer qualquer movimento. Tinha ainda em suas mãos aquela vassoura, pela qual escorria o suor frio que transpirava demasia.
— Não há um só dia que não o vejo sentado em frente àquela televisão em sua sala de estar a rir das babaquices que lhe jogam na cara — continuou o rato. Parece-me tão absorto em sua ignorância que não se apercebe o quão idiota e sem sentido é a vida que leva. Tem em uma das mãos uma vassoura, pronto para me matar, como se sua vida fosse tão mais valiosa que a minha, mas a verdade é que você é fraco. Moldaram o mundo a seu modo para sobreviverem. Não vê a fraqueza escondida por trás disso tudo? Não é capaz de viver por si só; tem que destruir a vida de tantos para se sentir altivo e dono de si mesmo. Câncer! É isso que você é.
Confuso e consternado com as verdades que eram vomitadas por aquele pequeno rato no canto de seu quarto frio e empoeirado, tentava organizar em sua mente perturbada uma resposta à altura:
— Você diz que se enoja de mim? Você anda sobre minhas fezes e come os restos daquilo que eu não mais quero. Como pode falar em fraqueza se rasteja pelos cantos e bueiros, imundo e portador de tantas doenças? Sua presença é motivo de asco para todos, asco esse, menor apenas do que o ódio que nutrem por você.
— Doença! Uma palavra forte! — disse o rato. Não se esqueça que a doença aqui é você. Já deve ter ouvido pela boca de um de seus demagogos irmãos em espécie que vocês próprios são a doença do mundo. Certamente ouviu que é a única espécie viva que se extinta só traria benefícios ao planeta. Mata-me logo. Acabe com meu sofrimento.
— E agora, por que quer morrer?
— Isso não é da sua conta. Apenas faça o que eu digo.
— Não. Eu insisto em saber.
— Sei que faço parte de um todo. Deixarei de existir, mas o meu corpo continuará por aqui, fará parte deste mundo por toda a eternidade. Tenho consciência de minhas fraquezas e sei que a dor inquietante que sinto ao ver toda a natureza se esvair diante de sua ignorância, com a sua tão aclamada modernidade e racionalidade, não passará de modo algum, e cheguei à conclusão de que não fará muita diferença se eu viver ou morrer; vocês continuarão aí até destruir tudo e sucumbirem sob seus próprios escombros. Eu já vivi muito e vi coisas que me fazem arrepiar todos os meus pelos pela simples lembrança. Anda! Mata-me logo. Acabe logo com isso.
O homem soltou a vassoura, levantou-se, e dando de ombros à criaturinha, saiu lentamente do quarto, deixando para trás um pequeno rato com os olhos entristecidos e a voz embargada a se apoiar sobre as duas patas traseiras com as mãos juntas e os bigodes arqueados. A dor do homem e do rato agora eram equivalentes.
Daquele dia em diante, conviveram naquela casa a se ignorarem como se nada houvesse acontecido. O rato, cada dia mais velho, a vida para ele passava mais depressa; o homem, cada dia mais soturno e distante, a vida para ele passava lenta e desgraçadamente dolorosa.
Como que impelidos por uma força maior e sobrenatural, encontraram-se algumas semanas após, numa tarde de julho fria e estranhamente calma, cada um a seu canto do ringue e saborearam um pedaço fresco de queijo. Não se entreolharam nem mesmo fizeram menção à presença um do outro. Naquela noite morreram, cada um a seu canto do quarto empoeirado, cada um envenenado por sua própria vida estranhamente dolorosa.

domingo, 21 de abril de 2013

Fúlvio e Martha

Martha: Firma-te de pé, homem.

Fúlvio: Onde estou?

Martha: Obedeça-me e em breve estarás no paraíso.

Fúlvio: Afasta-te de mim.

Martha: Ouça-me. Faça o que vos digo e viverás eternamente em doces sonhos.

Fúlvio: Não creio em tuas palavras.

Martha: Crer ou não crer, não é esta a questão.

Fúlvio: Sinto lascívia em teu tom de voz.

Marha: Tuas palavras são realmente belas, mas não estão no roteiro.

Fúlvio: Belas! Desonra-me tocar-te uma vez mais. Pois não há em meu corpo castigado uma só célula que nutra por ti qualquer afeição.

Martha: Heresia! Ontem mesmo juraste amor eterno.

Fúlvio: Crê tu na palavra de um bêbado?

Martha: Hei de tomá-la como verdadeira, onde e como me convir.

Fúlvio: Onde estou?

Martha: Continuas a pronunciar palavras que definitivamente não fazem parte do roteiro.

Fúlvio: Por que falas em roteiro?

Martha: Por tudo que há de mais sagrado, por que tantas perguntas?

Fúlvio: Esta é tua mão?

Martha: O que achas?

Fúlvio: Quão ressequidas estão elas! E este cheiro no ar? Seria flor de defunto?

Martha: Não vos entendo...

Fúlvio: Agora tu não me entendes!

Martha: Queres fazer-me derramar lágrimas de tristeza em dia em que a priori deveria ser carregado apenas de imensa alegria?

Fúlvio: Não há luz!

Martha: Não respondes.

Fúlvio: Não me recordo nem mesmo do momento em que me coloquei de pé.

Martha: Não haveria de ser isto um diálogo?

Fúlvio: Diálogo?! Queres mesmo dialogar? Então, diga-me onde estou e por que não consigo enxergar um palmo diante de mim?

Martha: Tua volúpia, tua paixão incontida, o veneno que colocaste em minha mente na noite anterior. O que tens a me dizer sobre eles?

Fúlvio: Volúpia, paixão, veneno! Realmente tu me confundes.

Martha: Voltemos ao roteiro.

Fúlvio: Que diabos é esse tal roteiro?

Martha: Cala-te herege! Não pronuncies tal palavra.

Fúlvio: Diabos?

Martha: Cala-te. Mais uma vez eu vos falo.

Fúlvio: Diabos?

Martha: Tua alma arderá nas chamas da eternidade se continuares a pronunciá-la.

Fúlvio: Arderás a meu lado?

Martha: O sarcasmo não vos salvará.

Fúlvio: Salvar-me? Salvar-me de quê, mulher?

Martha: Creio que eu tenha usado as palavras erradas. Perdoa-me!

Fúlvio: Perdoar-te? Minha cabeça dói. Sinceramente, não vos entendo. Não tenho a mínima idéia de onde eu possa estar. Não sei nem ao menos como cheguei aqui... E por que tamanha escuridão?

Martha: Silêncio. Tais palavras não estão...

Fúlvio: Já sei. Tais palavras não estão no roteiro.

Martha: ...

Fúlvio: Por que não soltas minha mão?

Martha: ...

Fúlvio: Maldita ressaca!

Martha: Silêncio!

Padre: Fúlvio Epicureus, aceitas Martha Turca Fırsatçı como sua legítima esposa?

Coronel Firsatçi: Ele aceita!

E fez-se a luz...

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Antagônico ser soturno



Projeta-se a sombra inquietante e soturna
no semblante ferido de sua alma agoniada;
aninha-se furtiva nos pólos norte e sul de seu cérebro entorpecido
pela luxúria e pelos pecados que sua vida recobrem.

A dor a qual se entrega lhe traz prazer e alegria a sua mente lamuriosa,
escarnecendo-se de sua fraqueza,
ao mesmo tempo humana e divina.

Faz-se carne apodrecida nos cantos de alguma praça,
doutor de seus próprios ensinamentos,
de suas convicções anacrônicas, fétidas e amargas
como o fel que escorre de sua boca ao pronunciar seus discursos;
palavras soltas ao vento, carregadas de seus propósitos macabros.

Faz da noite uma amiga e confidente,
das amarguras que tenta e consegue infringir no coração dos fracos.
Pela discórdia se faz altivo,
vangloriando-se do monstro que cultiva em seu ser.

Por que sofre e faz sofrer,
se a mácula de seus dias passados
é eterno estigma de seus dias vindouros?

Se a destruição das vidas alheias lhe é tão prazeroso,
por que não vive a sua própria sobre os crânios de suas vítimas,
ao invés de chorar lágrimas de vidro no vazio de seu quarto?

Se mata aquele que elegera seu inimigo,
por que não se banqueteia de sua carne e não se farta de seu sangue?
É o falso antagonismo de caráter que lhe traz tamanha credulidade?
Antagônico.

O azul do céu em contraponto à terra ressequida do deserto é uma analogia perfeita:
em seus olhos a doçura cativante dos anjos;
em suas mãos o sangue dos justos e não justos.

Aqueles que com você caminham
são os mesmos que têm à mesa com você o último cálice;
o arsênico desce-lhes a garganta, quente e corrosivo,
como sua saliva satânica.

Afasta de mim o seu cálice imundo;
durma nos montes a oeste de minha tenda enquanto monto guarda.
Não quero a sua companhia.

Haverá o dia em que o seu sorriso,
corrompido pela sua vida desregrada,
de opulências e futilidades,
de dor e de agonia,
não mais tocará o coração dos fracos.


Mais uma vez tentanto e mais uma vez, provavelmente fazendo algo meio porco, no melhor sentido da palavra, afinal, poemas, poesias e afins não são mesmo o meu forte. 

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O som e o sonhador - Parte 2



[...]Acredito que tenha chovido por cerca de duas horas ou pouco mais e só agora as nuvens dão espaço a tímidos raios de sol que atravessam o meu quarto e aquecem todo aquele espaço frio que é a enfermaria. Há, também, um pequeno pedacinho azul de céu que teima em aparecer, um lindo arco-íris bem ao longe corta o horizonte atrás das montanhas e traz consigo os pássaros que fazem algazarra próximo a minha janela.
Estou saindo desse imponente hospital, que muito provavelmente data de alguns séculos atrás, com alguns dos outros que estavam comigo, mas algo me fez indiferente e pouco falei com os rapazes do mesmo quarto em que permaneci por esses dias. O tempo em que lá estive me pareceu demorado em demasia. Custava a passar e eu sofria as consequências de não ter controle sobre meus dias aqui. Difícil acreditar que pra mim todo o terror da guerra tenha acabado, mas não se foi sem deixar marcas profundas, levando consigo um pedaço de meu corpo e boa parte de minha alma. Estive sempre deitado, velado por uma dor que me perseguiu e um dia se foi. Veio poucas vezes me visitar depois da partida, em especial quando o nervosismo da espera de minha alta do hospital me afligia.
Tudo ainda é um tanto cinza em minha memória, mas não me são tão distantes as imagens da guerra. Vejo ainda as explosões, os soldados a minha volta, os aviões a rasgar o céu e nada mais. Eu tenho a impressão de estar emergindo de um mar de loucura. E como definir loucura? Torna-me cada vez mais difícil definir tal palavra. Uma dentre tantas outras de minhas concepções que foram jogadas por terra em todos esses angustiantes meses de confronto.
Apesar de não estar mais nos campos de batalha, desde que fui ferido vi muito pouco do mundo que existe além das linhas de combate e minha curtíssima viagem de dois ou três quarteirões do hospital à estação foi, pra mim, como o início de um novo ciclo, uma nova vida que me era concedida. Entramos num caminhão empoeirado, com muita dificuldade, eu e mais onze outros soldados que deixam essa maldita guerra e rumamos para aqueles que foram nossos únicos sonhos cultivados durante o tempo em que estivemos a serviço da insanidade que nos faz lobos de nós mesmos, voltamos a nossa antiga vida, nossa família e nossos amigos que ficaram, sem nos esquecer, no entanto, daqueles que se foram.
As muletas são pesadas e o caminho da ambulância improvisada que nos levava até a estação, cerca de 30 metros, me pareceu uma infindável jornada. Faltava-me equilíbrio e uma boa carga de ânimo. A pequena calçada de paralelepípedos foi atravessada a passos lentos e cuidadosos. Adentrar aqueles portões imponentes era como me jogar num túnel do tempo, um tempo antes dessa guerra, antes dessas aflições, das dores e lágrimas. Era retornar à minha vida anterior, ao meu mundo tão calmo, sereno e rotineiro. Passaram-se duas semanas desde o combate nas montanhas e boa parte desse tempo estive inconsciente. Pequenos momentos de lucidez e nada mais. Não me recordo muito bem os momentos em que estive acordado e sei apenas que foram dias de solidão ainda maiores do que aqueles em que passei em meio à floresta.
Não me sobrava muita coisa daquele mundo insano, ou, melhor dizendo, não me restava muita coisa na vida e, em se tratando de contato humano, recordo-me da presença daquela enfermeira; algumas vezes a visita de um médico; e, em uma ocasião que devo chamar de especial, a visita de um tenente-coronel, do qual eu não me recordo o nome, que veio parabenizar a mim e aos praças que estavam no mesmo leito que eu pela batalha da qual participamos, mas que infelizmente perdemos. Era um senhor alto com um nariz grande e afilado, os olhos azuis, e uma boca pequena debaixo de um bigode tímido, apenas um risco sobre seus lábios que mal se moviam ao falar. Um oficial diferente de todos os outros que eu já havia visto. Sua voz era serena e com certeza era um homem de estima entre a alta patente, atrevo-me a arriscar esse palpite pelo seu porte altivo e um tom de arrogância que tentava esconder.
A todo o momento vemos aviões de patrulha cortar o céu dessa cidadezinha.
A estação tem uma elegância rústica, quebrada aqui e ali pelos uniformes maltrapilhos dos soldados a voltar para suas casas. Sinto a brisa a tocar meu rosto e não traz mais o cheiro da guerra. Apenas aquele cheiro de estação, cheiro de gente que passa com seus perfumes e o cheiro de terra molhada que veio com a chuva da manhã. Contei vinte passos da calçada até o interior. Um caminho grande pra quem agora não possui mais uma de suas pernas e tem de se acostumar a roçar as axilas em uma muleta pesada e desconfortável.
Falei muito pouco durante os momentos em que estive dentro do hospital, que fica a três ou quatro quarteirões de onde estou, mas corro o risco de ser essa uma afirmativa equivocada, pois tudo em minha mente é encoberto por uma névoa espessa e coisas simples do meu dia a dia são vistas sob uma ótica distorcida. Pareço ter acordado de um sonho e minhas lembranças são vagas e não muito dignas de credibilidade.
Agradeço a Deus por ter recebido alta. Na certa, outros feridos disputavam meu quarto, visto que as notícias que vem da frente de combate não são nada boas. Mas agora isso já não é mais meu problema. Não pertenço mais àquela realidade, ou prefiro acreditar que não. Fui libertado com uma perda irreparável, mas tantos outros, incluindo grandes amigos, pagaram um preço ainda maior para sair dessa guerra infernal que retira filhos e maridos de suas casas e devolve caixões, medalhas e bandeiras. Alguns outros tem a sorte de ser atingidos por apenas alguns estilhaços, de ter suas vidas poupadas, com alguns danos mais ou menos dolorosos, assim como eu.
Enquanto espero o trem, uma moça me chama atenção, encostada numa coluna com os olhos grandes, negros e esperançosos, o cabelo claro escorrendo até a metade das costas e as mãos a segurar uma caixa. Seu sorriso tímido de alguma forma me traz uma paz inexplicável. Sei que não me espera, mas gosto de imaginar que está ali ansiosa por me encontrar e que esteve ali por longo tempo com aquele presente nas mãos e o coração apertado de alguém que já esperou por uma eternidade o regresso de um grande amor. Penso que talvez ela traga roupas novas. Em minha mente a vejo correndo ao meu encontro, a caixa caindo ao chão para que dê licença a um abraço longo e apertado. Imagino seu coração pulsar encostado ao meu peito. Mas a realidade é que caminho sozinho e devagar e passo despercebido por ela.
Algumas pessoas se divertem a assistir um jogo qualquer na televisão no interior de uma pastelaria. Interessante ver o esporte persistir mesmo em meio ao caos de uma guerra e também me admira a forma com que as pessoas se fazem alheias a seu andamento, esquivando-se da realidade, por medo de se verem corroídas pelo mal que ela traz consigo.
Duas crianças brincam pelos corredores, enquanto uma outra vende doces e se esconde do guarda que carrega consigo um cassetete e uma pequena arma e está mais preocupado em galantear as garotas que passam por ele a ficar fiscalizando coisas tão insignificantes. Vejo também uma senhora a repreender uma menina que, ao que me parece, trata-se de sua neta, além de um senhor elegante que ajeita o paletó e parece confuso em meio a tanta gente e a moça continua a segurar aquela caixa em frente àquela coluna. O que pensa?
Sentei-me sobre as duas malas que trazia comigo e olhei em volta tentando adivinhar as histórias das pessoas que passavam a minha frente. Vi todos os tipos de personagens, nas suas mais variáveis faces. Embarcavam e desembarcavam de vagões de locomotivas carregadas tanto de gente quanto de minério de ferro, bois, madeira. Partiam para o sul, para o oeste, para o leste, sudeste, ou seja, eles partiam para todos os cantos do país. Voltavam para seus sítios, suas fazendas, suas casas em cidades maiores e se divertiam com o movimento, com a viagem e escondiam seus medos em trajes elegantes e sorrisos despretensiosos. A indústria não podia parar e a vida dessas pessoas também deveria continuar seu curso. Nunca se circulou tanto desde o início da guerra. Os trens partiam lotados: senhores e senhoras cuidando de sua vidinha pacata, sem a menor sombra de medo da guerra que há algum tempo já deixara essa cidade. Soldados e mais soldados se amontoavam nos últimos vagões, sempre escoltados por outros homens que ali estavam resguardando a vida daqueles que vinham dos campos de batalha com suas histórias de guerra e as levavam para seus pais, suas esposas e seus filhos. E a grande quantidade de vagões impressionava. Sumiam-se os últimos atrás de uma curva e meu trem saia às dezessete horas e não passavam das quinze.
Um rapazinho, por volta de seus dezesseis anos, toca um acordeão e consegue alguns trocados a 20 metros de mim. Abaixo minha cabeça e vejo que lá estava meu coturno, solitário sem o seu par, e ainda assim não queria mais necessitar dele. Não mais. Há um bom tempo não era engraxado.
Percorro os olhos ao redor procurando ver algum pequeno engraxate e infelizmente não há nenhum por aqui. A tarde se arrasta e eu me divirto rindo da conversa entre dois soldados que voltaram do flanco ao leste do qual eu me situava. Falam de garotas. Um deles perdeu parte do braço e o outro tem a cabeça enfaixada cobrindo um dos olhos, muito provavelmente o tenha perdido. Falam de Janete e Beatriz, duas mulheres que conheceram na cidade antes de ir para o combate. Dizem que as procuraram, mas as garotas já não estavam mais por ali. Deviam mesmo ser lindas ou será que a guerra as fez assim? Uma sombra de ternura, um pequeno punhado de carinho é o bastante para o apego desses soldados. Longe de suas famílias buscam atenção, afago... Uma pequena ponta de relacionamento em qualquer canto e se agarram a ele como se fosse de uma vida inteira.
Aos poucos a estação vai se esvaziando e poucos são os que viajam à tarde em tempos de guerra.
O trem vem anunciando sua chegada ao longe e com muita dificuldade me levanto, me apoiando na parede ao lado de minhas malas. Alguns outros soldados se apressam em enfileirar-se, resquício da vida militar que estão abandonando aos poucos. Vagarosamente ele se aproxima do ponto de embarque e demora alguns minutos até parar completamente. Os ex-combatentes, como nos outros trens, ocupam os vagões traseiros, entrando ordeiramente, pois os ferimentos ainda são recentes e evitam encostar uns nos outros.
Com um pouco de sorte pego a poltrona da janela. É um tanto desconfortável, mas há muito tempo, conforto não é bem uma palavra muito usada no meu dia a dia, a não ser quando vem acompanhada de uma negativa. Olho mais uma vez a estação e o trem volta a apitar anunciando sua partida.
A meu lado, um jovem rapaz. Não vejo ferimento algum. Mas prefiro o silêncio. Não quero conversar. Não agora.
E a estação vai ficando para trás com suas muitas histórias... Aquela moça também se foi e talvez amanhã continue lá. Ao certo espera quem não mais virá.[...]


Continua...