Amante das escrevinhanças, ávido por novas experiências léxicas, um adorador do bom português e ciente das próprias falhas ortográficas. As críticas, ainda que destrutivas (risos), são muito bem vindas.
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
sábado, 10 de agosto de 2013
Viagem entre as estrelas
Havia nos
bolsos do jovem terráqueo, cerca de cinco moedas intergalácticas, além de
alguns documentos e um ticket de passagem para a última nave interespacial a
sair no segundo dia do quinto ciclo lunar terrestre, quadragésimo sexto período
crepuscular da 7ª lua do grande corpo celeste conhecido como Thiremir, o
planeta mais próximo da estrela Cártase 32, planeta onde ele se localizava em
exílio desde que a Imperatriz Eterna tomara em golpe o Púlpito de Cristal,
centro de poder dos Sete Universos, através de uma manobra que, ao contrário do
que tem se pregado, entrará na história como um dos maiores desastres políticos
desde o malfadado levante dos planetas gêmeos de Manarat.
A nave com
capacidade para mil trezentos e vinte passageiros e carga superior a mil e
setecentas toneladas sairia em poucos instantes e o pobre rapaz não tirava os
olhos dos letreiros luminosos que anunciavam de tempos em tempos o resultado
dos embates travados no frio espaço que se estendia anos luz da grande
construção pressurizada em que se encontrava, mas perto o bastante para fazê-lo
tremer diante da expectativa pela convocação iminente ao serviço militar
estendido, que consistia em chamar à ativa todo aquele que fora dispensado do
serviço militar regular a menos de quatro anos.
O Multiverso
se tornara apinhado de grandes batalhas e acalorados debate na Câmara dos Sete
Reinos; mas nada disso era maior do que o que esperava o jovem terráqueo
justamente em seu planeta de origem. Ele temia mais do que o serviço dentro dos
grandes cruzadores, o desfecho de sua viagem. A própria aterrissagem e os
caminhos áridos que percorreria enfurnado em um dos transportadores terrestres,
até um dos poucos locais preservados daquele planeta desde a última grande
guerra o fazia sentir dores nos ossos e a não tirar as mãos dos bolsos de seu
fugaz casaco de pele de tridon. Apesar de toda a apreensão, havia em seu olhar
um misto de contentamento inenarrável, e nos seus lábios uma pequena alusão a
um sorriso contido, mas sincero. Ele sabia o que o esperava e a sua inquietação
denotava todo o seu despreparo.
O trabalho nas
minas o fizera parecer mais velho do que realmente era. Na verdade, não passava
de um garoto que aprendera a se virar logo cedo, e que vira todo o seu vilarejo
ser destruído quando forças fiéis à Imperatriz Eterna suspeitaram de que ali se
abrigava um dos rebeldes que lutavam pelo restabelecimento da ordem anterior.
Ele próprio pretendia ser um dos muitos que pegam em armas, juntando-se aos
exército instalados nos planetas congelados da estrela anã de Palora;
certamente, um ofício melhor do que o de mineiro, trabalhando para a
sanguinária déspota. O que mais corroia o coração de nosso jovem herói era
saber que havia se apaixonado justamente pela filha mais jovem da mulher que
massacrava reinos inteiros com seu esbravejar maldito nas audiências e
plenárias na Câmara dos Sete Universos. A conhecera quando esta, em uma de suas
conhecidas aventuras, adentrara clandestinamente e sem o conhecimento da mãe em
uma nave interespacial, fazendo o caminho entre a Terra e a Sétima Lua de
Thiremir.
Neste dia, ele
queria pegar logo a nave e adentrar o buraco de minhoca que conduzia até o seu
planeta natal e, despojado de todo o medo que o tomava, enfrentar a realidade
como o grande homem que ele sabia ser.
Quando o sinal
de embarque tocou, ele já se encontrava de pé. Viu passar diante de si alguns
reptilianos mal encarados, três ou quatros plasmóides — não os distinguia bem
um do outro, devido ao seu aspecto gelatinoso, nem tampouco quantos haveriam de
ser —, as lindas Pértipas e seus elegantes acompanhantes, todos se dirigindo
para o mesmo Universo, num vôo de muitas escalas, como o é o de classe
econômica. Embarcou e o frio na barriga só aumentava. A seu lado uma terna
companhia, mas não é de interesse ao presente relato apesar de sua
grandiosidade, sabedoria e encanto.
Os grandes
motores de nêutrons foram ligados — extremamente silenciosos — perceptíveis
apenas devido à tremulação das imagens ao redor, proporcionada pelas ondas
expelidas pelas turbinas da nave. Uma gigantesca porta de metal, extremamente
grossa foi fechada atrás da nave, e a redoma de vidro foi aberta à sua frente;
a nave levantou vôo lentamente deixando para trás a base de lançamento
localizada na última camada atmosférica da Sétima Lua. Já a uma boa distância
do empuxo gravitacional das luas e em especial de Thiremir, os motores
cyberespaciais foram ligados, o levando até os grandes arcos do Buraco de
Minhoca do Quadrante Cinco do Septuagésimo Terceiro Corte Einsteniano do
Multiverso. As pernas trêmulas mal se continham até o momento em que foram
fechadas todas as janelas da nave a fim de proteger os olhos dos viajantes da
grande rajada de cores proporcionada pelas estrelas passando a altíssima
velocidade e tão próximas da nave. Cerca de dez horas terrestres e a nave
chegou à Via Láctea e após algumas paradas seguiu para a Terra.
O coração do
jovem parecia suportar uma grande pressão, bombeando sangue freneticamente,
como se o perigo rondasse o seu caminho. Mas a beleza do que viria após o
desembarque e a viagem pelas estradas congeladas daquele que até pouco tempo
atrás fora um dos mais prósperos planetas do Segundo Universo, não poderiam ser
ilustradas ou mesmo resumidas em um simples relato.
Enquanto
olhava as montanhas a reluzir à luz do Sol, firmes e imponentes erguendo-se
atrevidas contra o céu alaranjado e salpicado por aves glaciais, ele
imaginava-se um grande herói cruzando em um trenó as planícies geladas,
acompanhado apenas de uma arma de plasma, prestes a tomar de assalto mais uma
das fortalezas da Imperatriz Eterna — Ah, esses malditos pensamentos que tem
tomado conta de suas horas de ócio!
Mais alguns
instantes e ele se via de pé com sua parca bagagem e seu fino casaco,
enfrentando um frio cortante, frente a uma grande muralha que se estendia para
além do alcance de sua visão. Apenas um grande portão e alguns passos o separavam
do fim de sua jornada. Um misto de contentamento, de medo, de incredulidade o
mantinha de pé e relutante, açoitado pelas frias rajadas de vento daquela
manhã. E como que por um passe de mágica, a pesada peça de metal maciço se
abriu revelando atrás de si um suntuoso palácio, precedido por uma escada no
final da qual estava, com um sorriso doce, a filha da Imperatriz Eterna.
O nosso jovem
herói subiu as escadas apressado e passou pela bela filha rebelde com a qual
trocou apenas um olhar, sobre o qual haveria muito a dizer, mas que em si já
resumia tudo a ser dito. Ela o seguiu apressada e o tomou pelo braço,
conduzindo-o a um quarto escuro, silencioso e de temperatura agradabilíssima,
em contraste àquela experimentada no exterior do palácio. Ela sorriu e ele com
os olhos banhados em lágrimas; mas essas eram lágrimas de alegria, carregadas
com todo o amor que ele poderia experimentar e dar em toda a sua existência. Viajara
por inúmeras galáxias, com algumas poucas moedas em seu bolso, para ter diante
de si, a mais bela e mais valiosa de todas as imagens, fruto de um amor entre
um pobre exilado e uma filha rebelde e igualmente exilada; ali estava diante do
jovem viajante espacial, a mais bela estrela de todos os universos conhecidos,
consubstanciada em um bebê frágil e indefeso: a sua filha querida.
Feliz dia dos
Pais! Deste e de todos os universos.
domingo, 23 de junho de 2013
Carta de um revolucionário
Nessas linhas
singelas venho expressar a minha saudade e peço-lhe logo desculpas pelo tempo
em que não lhe envio uma notícia sequer. É triste admitir, mas o tempo exíguo
que nos é concedido nesses dias modernos tem nos tornado frios e distantes.
Acredito que
nesse momento esteja tentando entender o porquê de eu ter lhe escrito uma carta
ao invés de um telefonema ou mesmo um e-mail. A verdade é que esse seu irmão
sempre foi um apaixonado pelos costumes antigos, as belas expressões de sentimento
e carinho, e nada melhor que uma carta escrita a próprio punho, o entrelaçar das
linhas de tinta sobre o papel fazendo nascer letras e a externar os
pensamentos, as memórias, os doces sentimentos.
Entretanto,
querida Maria, escrevo hoje para apaziguar o seu coração e, sobretudo, o
coração de nossos pais.
Primeiramente,
adianto-lhes que estou bem e que gozo da mais perfeita saúde. O único mal que
me aflige é a saudade que sinto de nossas tardes à varanda conversando sobre
política, economia, filmes, livros, e tudo que há de mais “intelectual”.
Mas sem muitos
rodeios, vamos ao que de mais importante devo externar nessa folha de papel
cuidadosamente arrancada do meu caderno de Filosofia Jurídica, a qual não fará
a mínima falta em minhas aulas de sexta-feira, afinal, como um filósofo eu sou
um ótimo cozinheiro.
Os jornais têm
feito imensa cobertura do que acontece por todo o país, mas sinto-me na
obrigação de colocar a você e a nossos pais a par de tudo que acontece hoje,
pelo menos, daquilo que acontece próximo a mim, sob o olhar de alguém do povo,
obviamente parcial, mas livre de opiniões compradas.
O país está em
convulsão e por todos os cantos ouvimos os gritos contra a corrupção e contra
toda a corja de bandidos engravatados que se reúnem em torno de um único
objetivo: se locupletar às custas do dinheiro público; dinheiro esse arrancado
dos nossos bolsos e de nossos compatriotas. Por todo lado levantam-se bandeiras
contra o câncer que toma conta de nossa sociedade, escondido atrás do sorriso
falso de propagadores de múltiplas falácias, das alianças feitas entre nossos
políticos e os grandes empresários, adoradores de Baco, vivendo de orgias e de
escândalos financiados por nosso suor e sangue.
Esse gigante,
querida Maria, esse nosso lindo país arde em febre, treme e se contorce em
berço esplêndido.
E como dói,
minha querida irmã, ver o mal corroer o nosso organismo, corromper nossos
pensamentos e nos fazer chorar e gritar de dor em hospitais abarrotados de
doentes e de desvios de verba! Sim, os nossos hospitais pululam de pobres
miseráveis deitados em corredores, vomitando suas entranhas, nas quais
escorregam médicos mal remunerados e auxiliares de enfermagem a prescrever
receitas como se médicos fossem.
Esse é o nosso
país.
Mas essa horda
de políticos mal intencionados agora se vê acuada em seus gabinetes luxuosos,
rodeada por seu pomposo exército de bajuladores, enquanto o povo vai às ruas e
grita palavras de ordem. Diversas são as reivindicações, porque diversas são as
mazelas. O nosso país padece de diversos males e em sua grande parte, senão em
sua inteireza, advindo das ações de nossos pseudo-representantes. Devo indagar:
a quem representam esses tão odiados senhores e senhoras que indiretamente tem
matado milhões de brasileiros? Vivem às custas da doença de nosso povo, dos
horrores aos quais estão sujeitos os nossos irmãos nas favelas e nos grandes
rincões desse torrão abandonado e tão maltratado que é o nosso país.
Querida irmã!
Faço parte da revolta que se instaura em todo canto desse país. Faço parte dos
jovens que têm saído às ruas a entoar nosso hino nacional, a fazer tremular a
bandeira de cores verde, amarela, azul e branca, em meio a tantas outras
bandeiras, que se erguem imponentes contrastando com a nuvem branca das bombas
de efeito moral que fazem chover sobre nossas cabeças.
Tenho olhado
direto nos olhos do monstro hobbesiano, que tenta nos inebriar com o cheiro de
seu hálito podre, repleto de seus discursos vazios e de suas falsas promessas.
Tenho em meu corpo as marcas que me infligiram seus lacaios. Mas a dor que
sinto em meu corpo castigado não é maior que a dor que toma conta de minha
alma.
O cheiro de
liberdade nas ruas, diante dessa falsa democracia, logo se vê suprimido pelo
cheiro de gás lacrimogênio e do spray de pimenta.
Nossos irmãos se
vestem de Estado e nos atacam como se atacassem a um inimigo feroz. Estamos
armados apenas pela indignação, pelo amor por nosso povo, pelo sonho de um país
melhor, e marchamos pelas ruas de nossas cidades empunhando bandeiras e ideais.
Mas os nossos governantes, aqueles mesmo que sobem aos palanques e propagam
seus discursos eleitoreiros, nos vêem como Dom Quixote frente aos moinhos de
vento numa luta inútil contra um inimigo inexistente. Não! Ele existe e está aí
a propagandear o tão maquiado crescimento de nossa economia e a lúdica ascensão
de nossos miseráveis à classe média. Queremos que nos vejam como povo soberano
frente a eles, os responsáveis por concretizar a nossa vontade, o que
obviamente não consiste na banalização da vida alheia, do subjugo dos mais
fracos, da institucionalização de preconceitos, da promoção da blindagem aos
corruptos.
Querida irmã,
enquanto chovem bombas sobre o povo de bem, nossos representantes se
banqueteiam de nossa carne, de nossas almas.
Enquanto nós
lutamos nas ruas, eles assistem aos jogos em seus palácios cravejados de
diamantes.
Peço-lhe irmã,
que me deseje coragem e que ore por mim, pois a luta deve continuar, assim como
o nosso espírito de mudança. Peço-lhe ainda, minha querida irmã, que
tranqüilize nossos pais, porque se luto é porque tenho a convicção de que faço
o certo e não quero continuar a ver meu povo morrer em hospitais, os nossos
adolescentes semi-analfabetos e nossas ruas cheias de mendigos.
A quem
interessa tanta gente ignorante, sem o mínimo de formação cultural, acrítica e
passiva? Justamente a eles, irmã. Aos inimigos do povo, os nossos políticos e
suas alianças escusas.
Eu lutarei,
sofrerei em meio às bombas e às balas de borracha, porque esse é o meu país e
não o país da Copa ou o país de Ali Baba e seus milhares de ladrões. Gritarei
em meio à fumaça que esse é o povo que não mais jaz em berço esplêndido, mas se
arrasta pelas trincheiras da revolução, pacífica e ordeira, que apenas se
defende da ganância de nossos políticos. Gritamos “não” à chamada legitimidade
da violência estatal.
O nosso país
convulsiona, irmã.
Não dê ouvidos
à imprensa, o status quo a é favorável.
Abraços,
daquele lhe ama muito.
Ps: A
repressão só me trará maior revolta e forças para marchar em meio à
fumaça e às explosões.
domingo, 12 de maio de 2013
Lágrimas no Tibet
No topo das
montanhas geladas do Tibet, onde os raios de sol surgem como alento aos corações
solitários de errantes e alpinistas, um jovem monge chorava sentado sobre os
escombros de um velho mosteiro, acompanhado de um lado por um cão e do outro
por uma velha cabra, ambos com seus olhos tristes e singelos, mirando ao longe
a paisagem de picos gelados a emergir em meio ao grande e maciço bloco de
nuvens, se assemelhando a ilhas em um oceano branco.
O jovem tinha
em uma das mãos um pequeno violino sem cordas, no corpo do qual se podia ver
escrito em runas antigas uma pequena frase que traduzida de forma literal dizia:
“Onde a paz encontra o coração do homem,
a natureza se ajoelha em reverência”; outros, porém, poderiam traduzi-la de
uma forma um tanto diferente, mas não comprovadamente incorreta: “Este pertenceu a um rei bastardo”. O
violino era de uma beleza inigualável, de cor extremamente negra, salpicado de
pontos brancos, como a noite repleta de estrelas.
Aquele choro silencioso
vindo dos olhos paradoxalmente alegres num rosto marcado pelo sorriso sincero
daquele jovem parecia apenas um derramar sem propósito de lágrimas, as quais
escorriam frias pelas suas bochechas rosadas até caírem como pequenas contas de
cristal no desfiladeiro no qual fora construído e em tempos imemoriais
desmoronara o mosteiro. Tão logo tocavam a terra alguns metros abaixo, transformavam-se
em filetes de água escorrendo por entre as pedras, deslizando atrevidos como
pequenas serpentes que iam se encontrando uma a uma até chegarem ao meio da
montanha, onde tomavam maiores proporções. Seguiam formando um pequeno riacho
que ia se alargando até tomar a forma de um grande rio caudaloso que descia as
encostas, dessa vez como um grande dragão a serpentear ruidoso a terra dura e
gelada que era o Tibet. Logo margeava a base de outras montanhas, encontrava-se
com outros rios vindos sabe-se lá de onde, provavelmente das lágrimas de um
outro jovem budista com seu rosto paradoxalmente feliz e rosado, no topo de uma
outra grande montanha. Formavam, assim, um mar de lágrimas, espalhando-se cheio
de vida por terras ainda mais distantes, cobrindo grandes desertos.
Aqui e ali
podiam ser vistos pequenos barcos onde se amontoavam famílias a buscar refúgio
nas ilhas que emergiam do mar de lágrimas dos pequenos monges budistas.
Diversas delas nasciam quase que instantaneamente, repletas de grandes árvores
frutíferas e animais de todas as espécies que vinham saudar com folhas de
coqueiro os homens, mulheres e crianças que atracavam em suas praias.
A águia voava
no céu azul da manhã iluminada, fazendo pequenos círculos enquanto via logo
abaixo o seu reflexo no grande oceano de lágrimas, que era límpido e sereno
como a alma de uma criança.
Houve um
terremoto no ocidente e ao longe, com os olhos argutos de um lince e o grande
discernimento das corujas das estepes, podia-se divisar uma massa de altivos
soldados em marcha. Um
exército que se erguia portando grandes e pesados escudos de prata e manejando
lanças de um brilho ímpar. Na fronte de cada um daqueles homens via-se
desenhada uma flor de lótus ou um hibisco vermelho. Nos seus corações a chama
do espírito guerreiro agora dava espaço à chama dos dias de paz. Num movimento
sincronizado pararam à beira de um lago de águas serenas e douradas e lançaram
suas vestes, seus escudos e suas lanças e permaneceram cobertos apenas por
peles e observaram a águia que por sua vez também os observava.
O pequeno
monge budista não os via, sentado sobre os escombros do mosteiro milenar no
topo de uma montanha no Tibet. O que ele via era um maciço de nuvens, no meio
do qual emergiam picos e mais picos de montanhas geladas.
Agora o oceano
de lágrimas cobria dois terços da terra antes seca e sem vida, outrora marcada
por encostas e escarpas, desfiladeiros e planaltos, e todas as grandes e
pequenas formações geológicas, todas elas desprovidas de vida, naquilo que num
passado distante se convencionou chamar de Terra.
Dos olhos do
pequeno monge as lágrimas escorriam puras e sinceras, firmes e contínuas,
indiferentes à alegria dos olhos de onde surgiam.
O cão e a
cabra agora dormiam ressonantes e ternos.
sábado, 11 de maio de 2013
Tique Taque - Uma triste homenagem ao dia das mães
Eu tinha a
sensação perturbadora de receber uma martelada no cérebro a cada tique-taque do
relógio de camelô pendurado na minha sala de estar. Era um daqueles relógios de
plástico, enfeitado com desenhos e que tocava uma música a cada hora do dia; a
mais triste e melancólica era a da meia noite ou meio dia, afinal havia apenas
12 músicas diferentes, mas como a meia noite é sempre um prato cheio a seus
maiores medos, aquela badalada do meio dia soada à zero hora adquiria
características e acordes muito mais funestos.
O silêncio na
sala de estar era quebrado apenas por aquele tique-taque irritante e pelo som
que fazia a minha perna ao roçar no sofá, enquanto eu me entregava ao tique
causado pelo meu nervosismo, subindo e descendo meu calcanhar direito num
movimento repetitivo e contínuo, enquanto tentava, em vão, ler o jornal do dia
anterior. Não lia. Apenas corria os olhos pela página, reconhecendo uma e outra
palavra, numa tentativa desesperada de me ver livre da ansiedade que tanto machucava
o meu ser.
Aqueles
minutos iam se arrastando tão lentos que eu poderia tocar o tempo.
Olhava vez ou
outra a foto sobre a mesinha de centro na qual eu me encontrava sorridente ao
lado de minha mãe, enquanto segurava minha pequena filhinha no colo. A angústia
ia aumentando e o meu coração se juntava ao som do relógio para quebrar o
silêncio que se espraiava por todo o ambiente. Aliás, era um ambiente bastante
exíguo, o qual eu tentava fazer parecer um lar, decorando-o com flores e
cortinas brancas, a foto de meu velho papaizinho ao lado da imagem de Santa
Luzia, próximos à janela que dava de frente para um prédio enorme e velho, o
qual não havia sido acabado por algum problema em sua estrutura e ficava ali, a
exibir a sua carcaça, desnuda e enegrecida pelo tempo, com ratos e baratas,
perambulando em seu interior. Animais asquerosos que resolviam fazer suas
visitas diárias ao nosso apartamento.
Os dias eram
felizes desde que estivéssemos unidas, mas eram duros, extremamente difíceis.
A angústia da
espera me fazia transpirar e um frio percorria minha espinha, enquanto o jornal
em minhas mãos vibrava embalado pelo meu tique nervoso. Sentia meu coração bater
cada vez mais forte, palpitando e reverberando através de meu peito, chegando à
minha garganta, onde um nó me fazia conter o choro iminente. Sentia-me insegura
e desamparada, principalmente por estar sozinha diante daquela situação
vexatória, a qual em poucos instantes eu iria protagonizar.
Assim, eu
esperava com os olhos vermelhos, mas secos como o deserto. Naquele momento as
lágrimas me fugiam e eu me apegava a isso, acreditando-me demasiadamente forte.
Eu não queria estar ali, mas somente eu podia vivenciar aquilo tudo. Poupara
minha mãe e minha pequena filhinha, conseguindo que se ausentassem por dois
dias na casa de alguns parentes distantes numa cidade vizinha.
Minha mãe, já
muito doente, assim como eu, diante de sua grande integridade e altivez, apesar
de todas as adversidades, adiantaria o dia de sua morte e levaria consigo
metade de minha esperança de dias melhores se ali estivesse naquele fatídico
dia. Ela me apoiara e cuidara de mim desde a morte de meu pai naquele acidente,
do qual eu guardo apenas duas recordações: o som do metal rangendo contra metal
num estrondo de milésimos de segundo, mas que perpetua na minha mente como se
tivesse acontecido em minutos angustiantes, relembrados em câmera lenta, e uma
cicatriz em minha perna esquerda. Apenas meu bom e velho pai se vitimara e hoje
zelava por nós no céu distante.
Absorta em
meus pensamentos e em minha tensão mal contida, voltei a mim no momento em que
o silêncio ensurdecedor da sala de estar foi interrompido pelo som de batidas
na porta.
Levantei-me a
muito custo, já que minhas pernas vacilavam e meu corpo inteiro tremia diante
do terror que experimentava. Arfei o máximo de ar que pude, endireitei meu
corpo, engoli a seco toda a angústia que apertava minha garganta por meio
daquele nó ao mesmo tempo em que colocava o jornal sobre a mesa de centro, ao
lado de minha mãe, minha filha e eu, e caminhei em direção à porta, insegura e
com uma vontade quase sufocante de gritar a plenos pulmões e desabar em choro
ali mesmo.
Olhei mais uma
vez a foto de meu pai, de minha mãe e minha filha e, até mesmo, para o quadro
de Santa Luzia.
Mais uma
batida, quase que ao mesmo tempo em que eu girava a chave e segurava a
maçaneta.
Quando abri
aquela porta, vi diante de mim um senhor que não aparentava mais de 40 anos,
com a barba por fazer, mas cheirando a loção pós-barba, os olhos miúdos e a
testa reta, extremada abaixo por sobrancelhas grossas e pesadas e acima por um
cabelo extremamente liso, com uma ou outra mecha mais rebelde caindo-lhe sobre
a testa ao fugir de seu penteado estilo social. Vestia um terno azul marinho e
tinha os sapatos impecavelmente engraxados, e em uma das mãos pendia uma
maleta, a qual me trazia demasiada ojeriza, pois eu sabia exatamente o que
guardava.
— Boa tarde,
senhora! — foram suas palavras.
Eu apenas me
permiti sorrir levemente, mas fora um sorriso sem convicção, vazio e temeroso,
que não demorara mais do que algumas frações de segundo, talvez imperceptível.
— Acho que
sabe o motivo de minha visita — ele continuou.
Meu coração
disparou e eu não pude conter a lágrima que desafiou minha indiferença forçada;
e minha porca atuação se desfez em menos de 10 segundos após a primeira troca
de olhares com aquele senhor. Eu não podia admitir a fraqueza nem ao menos
diante da derrota.
Naquele
momento ele olhou por sobre meus ombros e viu minha sala com seus próprios
olhos.
Na certa ele
pôde reparar os móveis escorados aqui e ali por calços, viu as paredes de
minha sala ainda em alvenaria nua, o mofo verde ao lado de meu sofá, este com
rasgos enormes, a mesa de centro improvisada com tijolos e um pedaço de
compensado, o cesto lotado de caixas de remédio e a televisão de 14 polegadas. Acredito
que possa ter visto até mesmo uma ou outra barata, muito provavelmente faminta,
pois nem eu mesma tinha o que comer naquela tarde. E certamente pôde ver a foto
de meu pai, de minha filha, de minha mãe, de Santa Luzia e a minha própria foto
sorridente.
Ele abriu a
maleta e eu levei as mãos à boca para segurar o grito de dor, retirou de dentro
uma folha de papel e pediu que eu a assinasse, e disse já com a voz embargada:
__ Em três
dias virão os conselheiros tutelares e a levarão. Por enquanto — aí ele fez uma
pausa, pois olhava no fundo dos meus olhos e de alguma forma se compadecia; e
continuou — fique com ela e não se esqueça que tudo um dia pode mudar.
Eu não pude
dizer uma única palavra e depois de assinada aquela folha de papel, eu a
entreguei aquele senhor e fechei a porta diante dele, enclausurando-me em meu
recanto de dor.
Caí de joelhos
e chorei lágrimas que arderam minha face.
Agora os dias seriam ainda mais duros
e difíceis, pois não estaríamos mais unidas.
Tique-taque, continuava o relógio
na sala de estar fria e vazia.
sexta-feira, 10 de maio de 2013
Sempre foi assim
Parecia mais
um dia comum, e era realmente um dia comum. Era mais um domingo ensolarado e as
crianças brincavam no playground, fazendo uma algazarra tamanha que se
confundiam a um bando de pardais a se fartar de arroz; a TV estava, como de
costume, ligada em um canal qualquer e eu não tinha a mínima idéia do que fazer
de interessante.
Naquela tarde
eu me deitei no sofá em frente àquela televisão tagarela e a minha completa “paixão”
por programas dominicais me fez desviar meus olhos para as manchas de mofo que
se espalhavam imponentes e em formas diversas no teto do meu apartamento. Vi
flores, elefantes, vi inclusive figuras famosas, como atores e políticos
inidôneos e políticos inidôneos, ou seja, políticos. O resultado daquela contemplação,
daquela imaginação fluida, como não acontecia há anos, foi lembrar-me de minha
infância e resolver revirar as minhas coisas antigas, minhas pequenas
recordações que estavam guardadas em um pequeno baú que havia pertencido a meu
avô e que eu recebera ao completar 10 anos de idade, dia da minha primeira
comunhão.
Revirando
aquelas relíquias, encontrei o meu antigo diário e a primeira coisa que me veio
à cabeça não foi ler suas páginas amareladas, e sim, apanhar uma caneta e
começar a escrever a primeira coisa que viesse à minha cabeça.
Numa fração de
segundos comecei a divagar sobre algo que sempre me intrigou, eu acho, ou
melhor, provavelmente tenha me intrigado por muito tempo, ainda que
intimamente, no âmago de minha inconsciência. Antes de qualquer coisa, resolvi
escrever essas palavras que antecederam. Agora sigo à minha explanação:
É difícil
entender a lógica ilógica das coisas, tão difícil quanto tentar entender os
motivos que levariam uma pessoa a escrever sobre algo tão desinteressante. Acredito
que não seja tão desinteressante, mas num domingo ensolarado, não haveria de
ser tudo desinteressante, a começar pelos programas de TV e diários de menino?
Estava
completamente vestido: chinelos, shorts e camiseta, apesar de estar suando
feito uma chaleira. A minha vontade era de estar nu, afinal eu estava sozinho
em casa, aliás, eu vivia sozinho em casa; e além do mais, nunca era visitado,
exceto quando eu atrasava o pagamento do aluguel. O síndico, um homem gordo e
com um bigode preto que escondia boa parte sua boca, deixando à mostra apenas o
lábio e dentes inferiores, morava no andar de baixo e mês sim, mês não, via a
necessidade de me fazer uma visita sem um motivo específico, mas o qual eu
conhecia, não por suas próprias palavras, mas eu bem sabia que se dava pelo
atraso de dois ou três dias, os quais eram totalmente justificáveis, afinal eu
era autônomo, dependia do mercado de pequenas obras e pequenos consertos para
angariar meus trocados.
Aquele
apresentador gordo e mal educado já havia começado o seu programa, a
interromper os seus entrevistados e a falar com uma autoridade forçada sobre
todos os assuntos suscitados. Vi que era aquilo outra coisa que eu não
conseguia compreender: aquele senhor irritante continuar há tantos anos a
invadir a minha intimidade e a de tantas outras pessoas todos os domingos. A sociedade
estava cheia de muitos outros exemplos como aquele; tantos que eu não poderia
listá-los.
Logo me veio à
cabeça uma pesquisa científica da qual eu não tenho muita certeza sobre a sua
credibilidade ou mesmo sobre sua existência, mas explicava um pouco essa
mentalidade ilógica ou pelo menos tentava, se é que, como já disse, realmente
existia. Sobre tal pesquisa (história) temos as seguintes palavras chave:
macaco, banana, escada e jato d’água. Então, se já ouviu falar dessa pesquisa,
vá direto ao 5º parágrafo a seguir.
Um grupo de chimpanzés foi colocado numa jaula,
no teto da qual foi pendurado um cacho de bananas. Os pesquisadores, que para
mim era um bando de desocupados, colocaram uma escada debaixo daquele cacho e
quando um dos macacos tentava subir para apanhá-lo, os demais recebiam fortes
jatos d’água, o que os fez, a partir de certo ponto, começar a agredir todos
que tentavam subir para apanhar as bananas.
Num dado momento os pesquisadores pararam de
lançar os tão incômodos jatos d’água, mas assim que um dos chimpanzés tentava
subir a escada os outros o surravam, até que nenhum deles se arriscava mais a
alcançar o cacho.
Um a um eles começaram a ser substituídos e,
tão logo o novo membro começava a subir aquela escada, recebia uma bela sova
dos demais sem saber exatamente o motivo, até que ele mesmo passava a bater nos
novos companheiros de jaula que eram colocados em substituição aos primeiros.
Foi assim até que não restou naquela jaula
nenhum dos macacos que originalmente recebeu o jato d’água, mas a prática de
surrar quem quer que tentasse subir aquela escada já estava de tal forma
arraigada naquele grupo que todos os seus membros o faziam sem fazer idéia do real
motivo que os levava a fazê-lo. A única explicação que eles tinham pro seu
próprio comportamento provavelmente era “não sei o porquê, só sei que sempre
foi assim”.
Acho que era
essa a explicação que eu poderia dar sobre a forma como me portava diante
daquele domingo ensolarado. Eu estava em casa, completamente vestido, apesar de
sozinho e me derretendo num calor de 32º, com a tv ligada num canal alienante
qualquer, ouvindo um gordo a falar alto e a interromper seus entrevistados. Naquele
dia eu almoçara sozinho, mas estava triste porque devia almoçar em família,
coisa que eu não tinha, afinal era domingo e eu devia ter almoçado com uma,
qualquer uma, nem que fosse a família do síndico de bigodes pretos, se é que
eles me aceitariam em seu palacete.
O dia
radiante, que passava lento ao som da algazarra feita pelas crianças no
playground, era mais um domingo na minha vida sozinha, fria, e digo isso em
plena consciência de que faziam 32º Celsius, medíocre e tragicômica.
Não sabia
exatamente o motivo de escrever naquele diário, nem por que aquele caderno
recebia aquele nome, se dificilmente alguém escrevia diariamente nele. Eu mesmo
demorara cerca de 30 anos para me aventurar de novo entre suas linhas azuis.
Estranhava o domingo ser considerado fim de semana, se em qualquer calendário
ele é o primeiro dia da semana, e não sabia nem mesmo por que eu dediquei
tantas linhas a esse choramingo inútil, o qual não seria lido por ninguém,
afinal, diários são coisas íntimas, e o que se escreve nele fica guardado
apenas para quem o escreveu. Então por que escrever? Talvez um dia alguém leia,
e por isso eu escreva como se tivesse um interlocutor, mas só “talvez”.
A razão de
minha rotina e de todos que conheço se pautar em coisas tão ilógicas eu não
sei, aliás, a única certeza que tenho é que eu não sei, só sei que sempre foi
assim.
sábado, 27 de abril de 2013
Uma fatia de queijo sem veneno, por favor.
— Câncer!
O homem
empalideceu de imediato enquanto seu corpo era tomado por uma onda de tremor,
quase uma convulsão a estampar em seu rosto retesado o medo e o espanto que o
tomara por completo. Podia-se ver à luz artificial de seu quarto as suas
pupilas, antes dilatadas, cerrarem-se no instante em que aquela palavra
percorrera o ar empoeirado e penetrara seus ouvidos. Afastando-se com três
passos curtos para trás, esbarrou-se na cadeira de mogno recostada num canto ao
lado da porta, desabando-se sobre ela como se seu corpo não tivesse mais vida,
recostando seu dorso pesadamente no seu encosto, quase o arrancando. Mas os
seus olhos compenetrados e a sua boca entreaberta a soltar um chiado quase
inaudível, como se não soubesse exatamente quais palavras pronunciar diante de
sua própria perplexidade, limitando-se apenas a chiar, denunciava a vida que
ainda existia naquele corpo repentinamente gélido e trêmulo. A verdade é que
não sabia exatamente o que dizer ou mesmo se deveria se aventurar a pelo menos
balbuciar algo. Não sabia nem mesmo se teria perdido a sanidade.
— Câncer! É
exatamente essa palavra — repetiu o pequeno rato no canto nu daquele quarto
empoeirado na Rua Sete de Setembro n° 30, na cidade de Belo Horizonte, fazendo
seus bigodes compridos balançarem no momento em que pronunciava aquelas
palavras de forma exasperada e com um olhar agressivo e ao mesmo tempo tomado
pelo medo, enquanto seu diminuto coração, já bastante ligeiro naturalmente, se
mostrava extremamente acelerado por causa da perseguição que antecedera aquele
momento.
Encontravam-se
os dois, homem e rato, em cantos opostos daquele cômodo como boxeadores em um
ringue esperando o soar do gongo para reiniciar a troca de jabs e diretos; dois
gladiadores a se entreolhar, cada um a seu modo, arfando todo o ar possível, a
tomar o fôlego que tanto lhes fazia falta, um pelo esforço depreendido e o
outro recuperando o ar que lhe havia sido tomado após a estupefação que lhe
causara o acontecido.
O homem de
meia idade ainda segurava a vassoura como se esta fosse uma espada ou uma lança
diante de um grande inimigo que o sobressaia em coragem naquele momento;
coragem esta, que assumira diante da morte iminente, uma vez que, por mais
trêmulo e empalidecido que estivesse aquele homem, a força bruta lhe dava
vantagem sobre o corpo ágil, porém frágil daquela criaturinha.
Por que fica
aí sentado a me olhar enquanto segura essa porcaria de vassoura? — esbravejou
o rato. Por que não me desfere logo esse golpe e acaba logo com minha vida
miserável? Fica aí com esse olhar de espanto, essa boca aberta e essa cara
esbranquiçada e não toma nenhuma iniciativa. Você me enoja!
O homem,
tentando recobrar os sentidos, reorganizava seus pensamentos e, ainda trêmulo e
tomado pelo medo, começou a balbuciar sua resposta, inicialmente apenas uma
variação do chiado que emitia até então, e, aos poucos, palavras audíveis e
mais palpáveis:
— N... nã...
não tenho a mínima idéia do que possa estar acontecendo aqui. Como você pode
falar?
— Da mesma
maneira que você — retrucou o rato. E aproveito a oportunidade para repetir que
é para mim e para o restante desse planeta maculado pela sua presença, um
câncer que deve ser extirpado.
O interlocutor
daquela criatura eloqüente agora voltava a tomar a sua cor habitual, mas ainda
permanecia trêmulo e não ousava fazer qualquer movimento. Tinha ainda em suas
mãos aquela vassoura, pela qual escorria o suor frio que transpirava demasia.
— Não há um só
dia que não o vejo sentado em frente àquela televisão em sua sala de estar a
rir das babaquices que lhe jogam na cara — continuou o rato. Parece-me tão
absorto em sua ignorância que não se apercebe o quão idiota e sem sentido é a
vida que leva. Tem em uma das mãos uma vassoura, pronto para me matar, como se
sua vida fosse tão mais valiosa que a minha, mas a verdade é que você é fraco. Moldaram
o mundo a seu modo para sobreviverem. Não vê a fraqueza escondida por trás
disso tudo? Não é capaz de viver por si só; tem que destruir a vida de tantos
para se sentir altivo e dono de si mesmo. Câncer! É isso que você é.
Confuso e
consternado com as verdades que eram vomitadas por aquele pequeno rato no canto
de seu quarto frio e empoeirado, tentava organizar em sua mente perturbada uma
resposta à altura:
— Você diz que
se enoja de mim? Você anda sobre minhas fezes e come os restos daquilo que eu
não mais quero. Como pode falar em fraqueza se rasteja pelos cantos e bueiros,
imundo e portador de tantas doenças? Sua presença é motivo de asco para todos,
asco esse, menor apenas do que o ódio que nutrem por você.
— Doença! Uma
palavra forte! — disse o rato. Não se esqueça que a doença aqui é você. Já deve
ter ouvido pela boca de um de seus demagogos irmãos em espécie que vocês
próprios são a doença do mundo. Certamente ouviu que é a única espécie viva
que se extinta só traria benefícios ao planeta. Mata-me logo. Acabe com meu
sofrimento.
— E agora, por
que quer morrer?
— Isso não é
da sua conta. Apenas faça o que eu digo.
— Não. Eu
insisto em saber.
— Sei que faço
parte de um todo. Deixarei de existir, mas o meu corpo continuará por aqui,
fará parte deste mundo por toda a eternidade. Tenho consciência de minhas
fraquezas e sei que a dor inquietante que sinto ao ver toda a natureza se
esvair diante de sua ignorância, com a sua tão aclamada modernidade e
racionalidade, não passará de modo algum, e cheguei à conclusão de que não fará
muita diferença se eu viver ou morrer; vocês continuarão aí até destruir tudo e
sucumbirem sob seus próprios escombros. Eu já vivi muito e vi coisas que me
fazem arrepiar todos os meus pelos pela simples lembrança. Anda! Mata-me logo.
Acabe logo com isso.
O homem soltou
a vassoura, levantou-se, e dando de ombros à criaturinha, saiu lentamente do
quarto, deixando para trás um pequeno rato com os olhos entristecidos e a voz
embargada a se apoiar sobre as duas patas traseiras com as mãos juntas e os
bigodes arqueados. A dor do homem e do rato agora eram equivalentes.
Daquele dia em
diante, conviveram naquela casa a se ignorarem como se nada houvesse acontecido.
O rato, cada dia mais velho, a vida para ele passava mais depressa; o homem,
cada dia mais soturno e distante, a vida para ele passava lenta e
desgraçadamente dolorosa.
Como que
impelidos por uma força maior e sobrenatural, encontraram-se algumas semanas
após, numa tarde de julho fria e estranhamente calma, cada um a seu canto do
ringue e saborearam um pedaço fresco de queijo. Não se entreolharam nem mesmo
fizeram menção à presença um do outro. Naquela noite morreram, cada um a seu
canto do quarto empoeirado, cada um envenenado por sua própria vida
estranhamente dolorosa.
domingo, 21 de abril de 2013
Fúlvio e Martha
Fúlvio: Onde estou?
Martha: Obedeça-me e em breve estarás no paraíso.
Fúlvio: Afasta-te de mim.
Martha: Ouça-me. Faça o que vos digo e viverás eternamente
em doces sonhos.
Fúlvio: Não creio em tuas palavras.
Martha: Crer ou não crer, não é esta a questão.
Fúlvio: Sinto lascívia em teu tom de voz.
Marha: Tuas palavras são realmente belas, mas não estão no
roteiro.
Fúlvio: Belas! Desonra-me tocar-te uma vez mais. Pois não há
em meu corpo castigado uma só célula que nutra por ti qualquer afeição.
Martha: Heresia! Ontem mesmo juraste amor eterno.
Fúlvio: Crê tu na palavra de um bêbado?
Martha: Hei de tomá-la como verdadeira, onde e como me
convir.
Fúlvio: Onde estou?
Martha: Continuas a pronunciar palavras que definitivamente
não fazem parte do roteiro.
Fúlvio: Por que falas em roteiro?
Martha: Por tudo que há de mais sagrado, por que tantas
perguntas?
Fúlvio: Esta é tua mão?
Martha: O que achas?
Fúlvio: Quão ressequidas estão elas! E este cheiro no ar? Seria
flor de defunto?
Martha: Não vos entendo...
Fúlvio: Agora tu não me entendes!
Martha: Queres fazer-me derramar lágrimas de tristeza em dia
em que a priori deveria ser carregado
apenas de imensa alegria?
Fúlvio: Não há luz!
Martha: Não respondes.
Fúlvio: Não me recordo nem mesmo do momento em que me
coloquei de pé.
Martha: Não haveria de ser isto um diálogo?
Fúlvio: Diálogo?! Queres mesmo dialogar? Então, diga-me onde
estou e por que não consigo enxergar um palmo diante de mim?
Martha: Tua volúpia, tua paixão incontida, o veneno que
colocaste em minha mente na noite anterior. O que tens a me dizer sobre eles?
Fúlvio: Volúpia, paixão, veneno! Realmente tu me confundes.
Martha: Voltemos ao roteiro.
Fúlvio: Que diabos é esse tal roteiro?
Martha: Cala-te herege! Não pronuncies tal palavra.
Fúlvio: Diabos?
Martha: Cala-te. Mais uma vez eu vos falo.
Fúlvio: Diabos?
Martha: Tua alma arderá nas chamas da eternidade se
continuares a pronunciá-la.
Fúlvio: Arderás a meu lado?
Martha: O sarcasmo não vos salvará.
Fúlvio: Salvar-me? Salvar-me de quê, mulher?
Martha: Creio que eu tenha usado as palavras erradas.
Perdoa-me!
Fúlvio: Perdoar-te? Minha cabeça dói. Sinceramente, não vos
entendo. Não tenho a mínima idéia de onde eu possa estar. Não sei nem ao menos
como cheguei aqui... E por que tamanha escuridão?
Martha: Silêncio. Tais palavras não estão...
Fúlvio: Já sei. Tais palavras não estão no roteiro.
Martha: ...
Fúlvio: Por que não soltas minha mão?
Martha: ...
Fúlvio: Maldita ressaca!
Martha: Silêncio!
Padre: Fúlvio Epicureus, aceitas Martha Turca Fırsatçı como sua legítima
esposa?
Coronel
Firsatçi: Ele aceita!
E
fez-se a luz...
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Antagônico ser soturno
Projeta-se a sombra
inquietante e soturna
no semblante ferido
de sua alma agoniada;
aninha-se furtiva nos
pólos norte e sul de seu cérebro entorpecido
pela luxúria e pelos
pecados que sua vida recobrem.
A dor a qual se entrega
lhe traz prazer e alegria a sua mente lamuriosa,
escarnecendo-se de
sua fraqueza,
ao mesmo tempo humana
e divina.
Faz-se carne apodrecida
nos cantos de alguma praça,
doutor de seus próprios
ensinamentos,
de suas convicções
anacrônicas, fétidas e amargas
como o fel que
escorre de sua boca ao pronunciar seus discursos;
palavras soltas ao
vento, carregadas de seus propósitos macabros.
Faz da noite uma
amiga e confidente,
das amarguras que
tenta e consegue infringir no coração dos fracos.
Pela discórdia se faz
altivo,
vangloriando-se do
monstro que cultiva em seu ser.
Por que sofre e faz
sofrer,
se a mácula de seus
dias passados
é eterno estigma de
seus dias vindouros?
Se a destruição das
vidas alheias lhe é tão prazeroso,
por que não vive a
sua própria sobre os crânios de suas vítimas,
ao invés de chorar lágrimas
de vidro no vazio de seu quarto?
Se mata aquele que
elegera seu inimigo,
por que não se
banqueteia de sua carne e não se farta de seu sangue?
É o falso antagonismo
de caráter que lhe traz tamanha credulidade?
Antagônico.
O azul do céu em
contraponto à terra ressequida do deserto é uma analogia perfeita:
em seus olhos a
doçura cativante dos anjos;
em suas mãos o sangue
dos justos e não justos.
Aqueles que com você
caminham
são os mesmos que têm
à mesa com você o último cálice;
o arsênico desce-lhes
a garganta, quente e corrosivo,
como sua saliva satânica.
Afasta de mim o seu cálice
imundo;
durma nos montes a
oeste de minha tenda enquanto monto guarda.
Não quero a sua
companhia.
Haverá o dia em que o
seu sorriso,
corrompido pela sua
vida desregrada,
de opulências e
futilidades,
de dor e de agonia,
não mais tocará o
coração dos fracos.
Mais uma vez tentanto e mais uma vez, provavelmente fazendo algo meio porco, no melhor sentido da palavra, afinal, poemas, poesias e afins não são mesmo o meu forte.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
O som e o sonhador - Parte 2
[...]Acredito que
tenha chovido por cerca de duas horas ou pouco mais e só agora as nuvens dão
espaço a tímidos raios de sol que atravessam o meu quarto e aquecem todo aquele
espaço frio que é a enfermaria. Há, também, um pequeno pedacinho azul de céu
que teima em aparecer, um lindo arco-íris bem ao longe corta o horizonte atrás
das montanhas e traz consigo os pássaros que fazem algazarra próximo a minha
janela.
Estou saindo
desse imponente hospital, que muito provavelmente data de alguns séculos atrás,
com alguns dos outros que estavam comigo, mas algo me fez indiferente e pouco
falei com os rapazes do mesmo quarto em que permaneci por esses dias. O tempo
em que lá estive me pareceu demorado em demasia. Custava
a passar e eu sofria as consequências de não ter controle sobre meus dias aqui.
Difícil acreditar que pra mim todo o terror da guerra tenha acabado, mas não se
foi sem deixar marcas profundas, levando consigo um pedaço de meu corpo e boa
parte de minha alma. Estive sempre deitado, velado por uma dor que me perseguiu
e um dia se foi. Veio poucas vezes me visitar depois da partida, em especial
quando o nervosismo da espera de minha alta do hospital me afligia.
Tudo ainda é
um tanto cinza em minha memória, mas não me são tão distantes as imagens da
guerra. Vejo ainda as explosões, os soldados a minha volta, os aviões a rasgar
o céu e nada mais. Eu tenho a impressão de estar emergindo de um mar de
loucura. E como definir loucura? Torna-me cada vez mais difícil definir tal
palavra. Uma dentre tantas outras de minhas concepções que foram jogadas por
terra em todos esses angustiantes meses de confronto.
Apesar de não
estar mais nos campos de batalha, desde que fui ferido vi muito pouco do mundo
que existe além das linhas de combate e minha curtíssima viagem de dois ou três
quarteirões do hospital à estação foi, pra mim, como o início de um novo ciclo,
uma nova vida que me era concedida. Entramos num caminhão empoeirado, com muita
dificuldade, eu e mais onze outros soldados que deixam essa maldita guerra e
rumamos para aqueles que foram nossos únicos sonhos cultivados durante o tempo
em que estivemos a serviço da insanidade que nos faz lobos de nós mesmos,
voltamos a nossa antiga vida, nossa família e nossos amigos que ficaram, sem nos
esquecer, no entanto, daqueles que se foram.
As muletas são
pesadas e o caminho da ambulância improvisada que nos levava até a estação,
cerca de 30 metros,
me pareceu uma infindável jornada. Faltava-me equilíbrio e uma boa carga de
ânimo. A pequena calçada de paralelepípedos foi atravessada a passos lentos e
cuidadosos. Adentrar aqueles portões imponentes era como me jogar num túnel do
tempo, um tempo antes dessa guerra, antes dessas aflições, das dores e
lágrimas. Era retornar à minha vida anterior, ao meu mundo tão calmo, sereno e
rotineiro. Passaram-se duas semanas desde o combate nas montanhas e boa parte
desse tempo estive inconsciente. Pequenos momentos de lucidez e nada mais. Não
me recordo muito bem os momentos em que estive acordado e sei apenas que foram
dias de solidão ainda maiores do que aqueles em que passei em meio à floresta.
Não me sobrava
muita coisa daquele mundo insano, ou, melhor dizendo, não me restava muita
coisa na vida e, em se tratando de contato humano, recordo-me da presença
daquela enfermeira; algumas vezes a visita de um médico; e, em uma ocasião que
devo chamar de especial, a visita de um tenente-coronel, do qual eu não me
recordo o nome, que veio parabenizar a mim e aos praças que estavam no mesmo
leito que eu pela batalha da qual participamos, mas que infelizmente perdemos.
Era um senhor alto com um nariz grande e afilado, os olhos azuis, e uma boca
pequena debaixo de um bigode tímido, apenas um risco sobre seus lábios que mal
se moviam ao falar. Um oficial diferente de todos os outros que eu já havia
visto. Sua voz era serena e com certeza era um homem de estima entre a alta
patente, atrevo-me a arriscar esse palpite pelo seu porte altivo e um tom de
arrogância que tentava esconder.
A todo o
momento vemos aviões de patrulha cortar o céu dessa cidadezinha.
A estação tem
uma elegância rústica, quebrada aqui e ali pelos uniformes maltrapilhos dos
soldados a voltar para suas casas. Sinto a brisa a tocar meu rosto e não traz
mais o cheiro da guerra. Apenas aquele cheiro de estação, cheiro de gente que
passa com seus perfumes e o cheiro de terra molhada que veio com a chuva da
manhã. Contei vinte passos da calçada até o interior. Um caminho grande pra
quem agora não possui mais uma de suas pernas e tem de se acostumar a roçar as
axilas em uma muleta pesada e desconfortável.
Falei muito
pouco durante os momentos em que estive dentro do hospital, que fica a três ou
quatro quarteirões de onde estou, mas corro o risco de ser essa uma afirmativa
equivocada, pois tudo em minha mente é encoberto por uma névoa espessa e coisas
simples do meu dia a dia são vistas sob uma ótica distorcida. Pareço ter
acordado de um sonho e minhas lembranças são vagas e não muito dignas de
credibilidade.
Agradeço a
Deus por ter recebido alta. Na certa, outros feridos disputavam meu quarto,
visto que as notícias que vem da frente de combate não são nada boas. Mas agora
isso já não é mais meu problema. Não pertenço mais àquela realidade, ou prefiro
acreditar que não. Fui libertado com uma perda irreparável, mas tantos outros,
incluindo grandes amigos, pagaram um preço ainda maior para sair dessa guerra
infernal que retira filhos e maridos de suas casas e devolve caixões, medalhas
e bandeiras. Alguns outros tem a sorte de ser atingidos por apenas alguns
estilhaços, de ter suas vidas poupadas, com alguns danos mais ou menos
dolorosos, assim como eu.
Enquanto
espero o trem, uma moça me chama atenção, encostada numa coluna com os olhos
grandes, negros e esperançosos, o cabelo claro escorrendo até a metade das
costas e as mãos a segurar uma caixa. Seu sorriso tímido de alguma forma me
traz uma paz inexplicável. Sei que não me espera, mas gosto de imaginar que
está ali ansiosa por me encontrar e que esteve ali por longo tempo com aquele
presente nas mãos e o coração apertado de alguém que já esperou por uma
eternidade o regresso de um grande amor. Penso que talvez ela traga roupas
novas. Em minha mente a vejo correndo ao meu encontro, a caixa caindo ao chão
para que dê licença a um abraço longo e apertado. Imagino seu coração pulsar
encostado ao meu peito. Mas a realidade é que caminho sozinho e devagar e passo
despercebido por ela.
Algumas
pessoas se divertem a assistir um jogo qualquer na televisão no interior de uma
pastelaria. Interessante ver o esporte persistir mesmo em meio ao caos de uma
guerra e também me admira a forma com que as pessoas se fazem alheias a seu
andamento, esquivando-se da realidade, por medo de se verem corroídas pelo mal
que ela traz consigo.
Duas crianças
brincam pelos corredores, enquanto uma outra vende doces e se esconde do guarda
que carrega consigo um cassetete e uma pequena arma e está mais preocupado em
galantear as garotas que passam por ele a ficar fiscalizando coisas tão
insignificantes. Vejo também uma senhora a repreender uma menina que, ao que me
parece, trata-se de sua neta, além de um senhor elegante que ajeita o paletó e
parece confuso em meio a tanta gente e a moça continua a segurar aquela caixa
em frente àquela coluna. O que pensa?
Sentei-me
sobre as duas malas que trazia comigo e olhei em volta tentando adivinhar as
histórias das pessoas que passavam a minha frente. Vi todos os tipos de
personagens, nas suas mais variáveis faces. Embarcavam e desembarcavam de
vagões de locomotivas carregadas tanto de gente quanto de minério de ferro,
bois, madeira. Partiam para o sul, para o oeste, para o leste, sudeste, ou
seja, eles partiam para todos os cantos do país. Voltavam para seus sítios,
suas fazendas, suas casas em cidades maiores e se divertiam com o movimento,
com a viagem e escondiam seus medos em trajes elegantes e sorrisos
despretensiosos. A indústria não podia parar e a vida dessas pessoas também
deveria continuar seu curso. Nunca se circulou tanto desde o início da guerra.
Os trens partiam lotados: senhores e senhoras cuidando de sua vidinha pacata,
sem a menor sombra de medo da guerra que há algum tempo já deixara essa cidade.
Soldados e mais soldados se amontoavam nos últimos vagões, sempre escoltados
por outros homens que ali estavam resguardando a vida daqueles que vinham dos
campos de batalha com suas histórias de guerra e as levavam para seus pais,
suas esposas e seus filhos. E a grande quantidade de vagões impressionava.
Sumiam-se os últimos atrás de uma curva e meu trem saia às dezessete horas e
não passavam das quinze.
Um rapazinho,
por volta de seus dezesseis anos, toca um acordeão e consegue alguns trocados a
20 metros
de mim. Abaixo minha cabeça e vejo que lá estava meu coturno, solitário sem o
seu par, e ainda assim não queria mais necessitar dele. Não mais. Há um bom
tempo não era engraxado.
Percorro os
olhos ao redor procurando ver algum pequeno engraxate e infelizmente não há
nenhum por aqui. A tarde se arrasta e eu me divirto rindo da conversa entre
dois soldados que voltaram do flanco ao leste do qual eu me situava. Falam de
garotas. Um deles perdeu parte do braço e o outro tem a cabeça enfaixada
cobrindo um dos olhos, muito provavelmente o tenha perdido. Falam de Janete e
Beatriz, duas mulheres que conheceram na cidade antes de ir para o combate.
Dizem que as procuraram, mas as garotas já não estavam mais por ali. Deviam
mesmo ser lindas ou será que a guerra as fez assim? Uma sombra de ternura, um
pequeno punhado de carinho é o bastante para o apego desses soldados. Longe de
suas famílias buscam atenção, afago... Uma pequena ponta de relacionamento em
qualquer canto e se agarram a ele como se fosse de uma vida inteira.
Aos poucos a
estação vai se esvaziando e poucos são os que viajam à tarde em tempos de
guerra.
O trem vem
anunciando sua chegada ao longe e com muita dificuldade me levanto, me apoiando
na parede ao lado de minhas malas. Alguns outros soldados se apressam em
enfileirar-se, resquício da vida militar que estão abandonando aos poucos.
Vagarosamente ele se aproxima do ponto de embarque e demora alguns minutos até
parar completamente. Os ex-combatentes, como nos outros trens, ocupam os vagões
traseiros, entrando ordeiramente, pois os ferimentos ainda são recentes e evitam
encostar uns nos outros.
Com um pouco
de sorte pego a poltrona da janela. É um tanto desconfortável, mas há muito
tempo, conforto não é bem uma palavra muito usada no meu dia a dia, a não ser
quando vem acompanhada de uma negativa. Olho mais uma vez a estação e o trem
volta a apitar anunciando sua partida.
A meu lado, um
jovem rapaz. Não vejo ferimento algum. Mas prefiro o silêncio. Não quero
conversar. Não agora.
E a estação
vai ficando para trás com suas muitas histórias... Aquela moça também se foi e talvez
amanhã continue lá. Ao certo espera quem não mais virá.[...]
Continua...
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