Nessas linhas
singelas venho expressar a minha saudade e peço-lhe logo desculpas pelo tempo
em que não lhe envio uma notícia sequer. É triste admitir, mas o tempo exíguo
que nos é concedido nesses dias modernos tem nos tornado frios e distantes.
Acredito que
nesse momento esteja tentando entender o porquê de eu ter lhe escrito uma carta
ao invés de um telefonema ou mesmo um e-mail. A verdade é que esse seu irmão
sempre foi um apaixonado pelos costumes antigos, as belas expressões de sentimento
e carinho, e nada melhor que uma carta escrita a próprio punho, o entrelaçar das
linhas de tinta sobre o papel fazendo nascer letras e a externar os
pensamentos, as memórias, os doces sentimentos.
Entretanto,
querida Maria, escrevo hoje para apaziguar o seu coração e, sobretudo, o
coração de nossos pais.
Primeiramente,
adianto-lhes que estou bem e que gozo da mais perfeita saúde. O único mal que
me aflige é a saudade que sinto de nossas tardes à varanda conversando sobre
política, economia, filmes, livros, e tudo que há de mais “intelectual”.
Mas sem muitos
rodeios, vamos ao que de mais importante devo externar nessa folha de papel
cuidadosamente arrancada do meu caderno de Filosofia Jurídica, a qual não fará
a mínima falta em minhas aulas de sexta-feira, afinal, como um filósofo eu sou
um ótimo cozinheiro.
Os jornais têm
feito imensa cobertura do que acontece por todo o país, mas sinto-me na
obrigação de colocar a você e a nossos pais a par de tudo que acontece hoje,
pelo menos, daquilo que acontece próximo a mim, sob o olhar de alguém do povo,
obviamente parcial, mas livre de opiniões compradas.
O país está em
convulsão e por todos os cantos ouvimos os gritos contra a corrupção e contra
toda a corja de bandidos engravatados que se reúnem em torno de um único
objetivo: se locupletar às custas do dinheiro público; dinheiro esse arrancado
dos nossos bolsos e de nossos compatriotas. Por todo lado levantam-se bandeiras
contra o câncer que toma conta de nossa sociedade, escondido atrás do sorriso
falso de propagadores de múltiplas falácias, das alianças feitas entre nossos
políticos e os grandes empresários, adoradores de Baco, vivendo de orgias e de
escândalos financiados por nosso suor e sangue.
Esse gigante,
querida Maria, esse nosso lindo país arde em febre, treme e se contorce em
berço esplêndido.
E como dói,
minha querida irmã, ver o mal corroer o nosso organismo, corromper nossos
pensamentos e nos fazer chorar e gritar de dor em hospitais abarrotados de
doentes e de desvios de verba! Sim, os nossos hospitais pululam de pobres
miseráveis deitados em corredores, vomitando suas entranhas, nas quais
escorregam médicos mal remunerados e auxiliares de enfermagem a prescrever
receitas como se médicos fossem.
Esse é o nosso
país.
Mas essa horda
de políticos mal intencionados agora se vê acuada em seus gabinetes luxuosos,
rodeada por seu pomposo exército de bajuladores, enquanto o povo vai às ruas e
grita palavras de ordem. Diversas são as reivindicações, porque diversas são as
mazelas. O nosso país padece de diversos males e em sua grande parte, senão em
sua inteireza, advindo das ações de nossos pseudo-representantes. Devo indagar:
a quem representam esses tão odiados senhores e senhoras que indiretamente tem
matado milhões de brasileiros? Vivem às custas da doença de nosso povo, dos
horrores aos quais estão sujeitos os nossos irmãos nas favelas e nos grandes
rincões desse torrão abandonado e tão maltratado que é o nosso país.
Querida irmã!
Faço parte da revolta que se instaura em todo canto desse país. Faço parte dos
jovens que têm saído às ruas a entoar nosso hino nacional, a fazer tremular a
bandeira de cores verde, amarela, azul e branca, em meio a tantas outras
bandeiras, que se erguem imponentes contrastando com a nuvem branca das bombas
de efeito moral que fazem chover sobre nossas cabeças.
Tenho olhado
direto nos olhos do monstro hobbesiano, que tenta nos inebriar com o cheiro de
seu hálito podre, repleto de seus discursos vazios e de suas falsas promessas.
Tenho em meu corpo as marcas que me infligiram seus lacaios. Mas a dor que
sinto em meu corpo castigado não é maior que a dor que toma conta de minha
alma.
O cheiro de
liberdade nas ruas, diante dessa falsa democracia, logo se vê suprimido pelo
cheiro de gás lacrimogênio e do spray de pimenta.
Nossos irmãos se
vestem de Estado e nos atacam como se atacassem a um inimigo feroz. Estamos
armados apenas pela indignação, pelo amor por nosso povo, pelo sonho de um país
melhor, e marchamos pelas ruas de nossas cidades empunhando bandeiras e ideais.
Mas os nossos governantes, aqueles mesmo que sobem aos palanques e propagam
seus discursos eleitoreiros, nos vêem como Dom Quixote frente aos moinhos de
vento numa luta inútil contra um inimigo inexistente. Não! Ele existe e está aí
a propagandear o tão maquiado crescimento de nossa economia e a lúdica ascensão
de nossos miseráveis à classe média. Queremos que nos vejam como povo soberano
frente a eles, os responsáveis por concretizar a nossa vontade, o que
obviamente não consiste na banalização da vida alheia, do subjugo dos mais
fracos, da institucionalização de preconceitos, da promoção da blindagem aos
corruptos.
Querida irmã,
enquanto chovem bombas sobre o povo de bem, nossos representantes se
banqueteiam de nossa carne, de nossas almas.
Enquanto nós
lutamos nas ruas, eles assistem aos jogos em seus palácios cravejados de
diamantes.
Peço-lhe irmã,
que me deseje coragem e que ore por mim, pois a luta deve continuar, assim como
o nosso espírito de mudança. Peço-lhe ainda, minha querida irmã, que
tranqüilize nossos pais, porque se luto é porque tenho a convicção de que faço
o certo e não quero continuar a ver meu povo morrer em hospitais, os nossos
adolescentes semi-analfabetos e nossas ruas cheias de mendigos.
A quem
interessa tanta gente ignorante, sem o mínimo de formação cultural, acrítica e
passiva? Justamente a eles, irmã. Aos inimigos do povo, os nossos políticos e
suas alianças escusas.
Eu lutarei,
sofrerei em meio às bombas e às balas de borracha, porque esse é o meu país e
não o país da Copa ou o país de Ali Baba e seus milhares de ladrões. Gritarei
em meio à fumaça que esse é o povo que não mais jaz em berço esplêndido, mas se
arrasta pelas trincheiras da revolução, pacífica e ordeira, que apenas se
defende da ganância de nossos políticos. Gritamos “não” à chamada legitimidade
da violência estatal.
O nosso país
convulsiona, irmã.
Não dê ouvidos
à imprensa, o status quo a é favorável.
Abraços,
daquele lhe ama muito.
Ps: A
repressão só me trará maior revolta e forças para marchar em meio à
fumaça e às explosões.
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