[...]Acredito que
tenha chovido por cerca de duas horas ou pouco mais e só agora as nuvens dão
espaço a tímidos raios de sol que atravessam o meu quarto e aquecem todo aquele
espaço frio que é a enfermaria. Há, também, um pequeno pedacinho azul de céu
que teima em aparecer, um lindo arco-íris bem ao longe corta o horizonte atrás
das montanhas e traz consigo os pássaros que fazem algazarra próximo a minha
janela.
Estou saindo
desse imponente hospital, que muito provavelmente data de alguns séculos atrás,
com alguns dos outros que estavam comigo, mas algo me fez indiferente e pouco
falei com os rapazes do mesmo quarto em que permaneci por esses dias. O tempo
em que lá estive me pareceu demorado em demasia. Custava
a passar e eu sofria as consequências de não ter controle sobre meus dias aqui.
Difícil acreditar que pra mim todo o terror da guerra tenha acabado, mas não se
foi sem deixar marcas profundas, levando consigo um pedaço de meu corpo e boa
parte de minha alma. Estive sempre deitado, velado por uma dor que me perseguiu
e um dia se foi. Veio poucas vezes me visitar depois da partida, em especial
quando o nervosismo da espera de minha alta do hospital me afligia.
Tudo ainda é
um tanto cinza em minha memória, mas não me são tão distantes as imagens da
guerra. Vejo ainda as explosões, os soldados a minha volta, os aviões a rasgar
o céu e nada mais. Eu tenho a impressão de estar emergindo de um mar de
loucura. E como definir loucura? Torna-me cada vez mais difícil definir tal
palavra. Uma dentre tantas outras de minhas concepções que foram jogadas por
terra em todos esses angustiantes meses de confronto.
Apesar de não
estar mais nos campos de batalha, desde que fui ferido vi muito pouco do mundo
que existe além das linhas de combate e minha curtíssima viagem de dois ou três
quarteirões do hospital à estação foi, pra mim, como o início de um novo ciclo,
uma nova vida que me era concedida. Entramos num caminhão empoeirado, com muita
dificuldade, eu e mais onze outros soldados que deixam essa maldita guerra e
rumamos para aqueles que foram nossos únicos sonhos cultivados durante o tempo
em que estivemos a serviço da insanidade que nos faz lobos de nós mesmos,
voltamos a nossa antiga vida, nossa família e nossos amigos que ficaram, sem nos
esquecer, no entanto, daqueles que se foram.
As muletas são
pesadas e o caminho da ambulância improvisada que nos levava até a estação,
cerca de 30 metros,
me pareceu uma infindável jornada. Faltava-me equilíbrio e uma boa carga de
ânimo. A pequena calçada de paralelepípedos foi atravessada a passos lentos e
cuidadosos. Adentrar aqueles portões imponentes era como me jogar num túnel do
tempo, um tempo antes dessa guerra, antes dessas aflições, das dores e
lágrimas. Era retornar à minha vida anterior, ao meu mundo tão calmo, sereno e
rotineiro. Passaram-se duas semanas desde o combate nas montanhas e boa parte
desse tempo estive inconsciente. Pequenos momentos de lucidez e nada mais. Não
me recordo muito bem os momentos em que estive acordado e sei apenas que foram
dias de solidão ainda maiores do que aqueles em que passei em meio à floresta.
Não me sobrava
muita coisa daquele mundo insano, ou, melhor dizendo, não me restava muita
coisa na vida e, em se tratando de contato humano, recordo-me da presença
daquela enfermeira; algumas vezes a visita de um médico; e, em uma ocasião que
devo chamar de especial, a visita de um tenente-coronel, do qual eu não me
recordo o nome, que veio parabenizar a mim e aos praças que estavam no mesmo
leito que eu pela batalha da qual participamos, mas que infelizmente perdemos.
Era um senhor alto com um nariz grande e afilado, os olhos azuis, e uma boca
pequena debaixo de um bigode tímido, apenas um risco sobre seus lábios que mal
se moviam ao falar. Um oficial diferente de todos os outros que eu já havia
visto. Sua voz era serena e com certeza era um homem de estima entre a alta
patente, atrevo-me a arriscar esse palpite pelo seu porte altivo e um tom de
arrogância que tentava esconder.
A todo o
momento vemos aviões de patrulha cortar o céu dessa cidadezinha.
A estação tem
uma elegância rústica, quebrada aqui e ali pelos uniformes maltrapilhos dos
soldados a voltar para suas casas. Sinto a brisa a tocar meu rosto e não traz
mais o cheiro da guerra. Apenas aquele cheiro de estação, cheiro de gente que
passa com seus perfumes e o cheiro de terra molhada que veio com a chuva da
manhã. Contei vinte passos da calçada até o interior. Um caminho grande pra
quem agora não possui mais uma de suas pernas e tem de se acostumar a roçar as
axilas em uma muleta pesada e desconfortável.
Falei muito
pouco durante os momentos em que estive dentro do hospital, que fica a três ou
quatro quarteirões de onde estou, mas corro o risco de ser essa uma afirmativa
equivocada, pois tudo em minha mente é encoberto por uma névoa espessa e coisas
simples do meu dia a dia são vistas sob uma ótica distorcida. Pareço ter
acordado de um sonho e minhas lembranças são vagas e não muito dignas de
credibilidade.
Agradeço a
Deus por ter recebido alta. Na certa, outros feridos disputavam meu quarto,
visto que as notícias que vem da frente de combate não são nada boas. Mas agora
isso já não é mais meu problema. Não pertenço mais àquela realidade, ou prefiro
acreditar que não. Fui libertado com uma perda irreparável, mas tantos outros,
incluindo grandes amigos, pagaram um preço ainda maior para sair dessa guerra
infernal que retira filhos e maridos de suas casas e devolve caixões, medalhas
e bandeiras. Alguns outros tem a sorte de ser atingidos por apenas alguns
estilhaços, de ter suas vidas poupadas, com alguns danos mais ou menos
dolorosos, assim como eu.
Enquanto
espero o trem, uma moça me chama atenção, encostada numa coluna com os olhos
grandes, negros e esperançosos, o cabelo claro escorrendo até a metade das
costas e as mãos a segurar uma caixa. Seu sorriso tímido de alguma forma me
traz uma paz inexplicável. Sei que não me espera, mas gosto de imaginar que
está ali ansiosa por me encontrar e que esteve ali por longo tempo com aquele
presente nas mãos e o coração apertado de alguém que já esperou por uma
eternidade o regresso de um grande amor. Penso que talvez ela traga roupas
novas. Em minha mente a vejo correndo ao meu encontro, a caixa caindo ao chão
para que dê licença a um abraço longo e apertado. Imagino seu coração pulsar
encostado ao meu peito. Mas a realidade é que caminho sozinho e devagar e passo
despercebido por ela.
Algumas
pessoas se divertem a assistir um jogo qualquer na televisão no interior de uma
pastelaria. Interessante ver o esporte persistir mesmo em meio ao caos de uma
guerra e também me admira a forma com que as pessoas se fazem alheias a seu
andamento, esquivando-se da realidade, por medo de se verem corroídas pelo mal
que ela traz consigo.
Duas crianças
brincam pelos corredores, enquanto uma outra vende doces e se esconde do guarda
que carrega consigo um cassetete e uma pequena arma e está mais preocupado em
galantear as garotas que passam por ele a ficar fiscalizando coisas tão
insignificantes. Vejo também uma senhora a repreender uma menina que, ao que me
parece, trata-se de sua neta, além de um senhor elegante que ajeita o paletó e
parece confuso em meio a tanta gente e a moça continua a segurar aquela caixa
em frente àquela coluna. O que pensa?
Sentei-me
sobre as duas malas que trazia comigo e olhei em volta tentando adivinhar as
histórias das pessoas que passavam a minha frente. Vi todos os tipos de
personagens, nas suas mais variáveis faces. Embarcavam e desembarcavam de
vagões de locomotivas carregadas tanto de gente quanto de minério de ferro,
bois, madeira. Partiam para o sul, para o oeste, para o leste, sudeste, ou
seja, eles partiam para todos os cantos do país. Voltavam para seus sítios,
suas fazendas, suas casas em cidades maiores e se divertiam com o movimento,
com a viagem e escondiam seus medos em trajes elegantes e sorrisos
despretensiosos. A indústria não podia parar e a vida dessas pessoas também
deveria continuar seu curso. Nunca se circulou tanto desde o início da guerra.
Os trens partiam lotados: senhores e senhoras cuidando de sua vidinha pacata,
sem a menor sombra de medo da guerra que há algum tempo já deixara essa cidade.
Soldados e mais soldados se amontoavam nos últimos vagões, sempre escoltados
por outros homens que ali estavam resguardando a vida daqueles que vinham dos
campos de batalha com suas histórias de guerra e as levavam para seus pais,
suas esposas e seus filhos. E a grande quantidade de vagões impressionava.
Sumiam-se os últimos atrás de uma curva e meu trem saia às dezessete horas e
não passavam das quinze.
Um rapazinho,
por volta de seus dezesseis anos, toca um acordeão e consegue alguns trocados a
20 metros
de mim. Abaixo minha cabeça e vejo que lá estava meu coturno, solitário sem o
seu par, e ainda assim não queria mais necessitar dele. Não mais. Há um bom
tempo não era engraxado.
Percorro os
olhos ao redor procurando ver algum pequeno engraxate e infelizmente não há
nenhum por aqui. A tarde se arrasta e eu me divirto rindo da conversa entre
dois soldados que voltaram do flanco ao leste do qual eu me situava. Falam de
garotas. Um deles perdeu parte do braço e o outro tem a cabeça enfaixada
cobrindo um dos olhos, muito provavelmente o tenha perdido. Falam de Janete e
Beatriz, duas mulheres que conheceram na cidade antes de ir para o combate.
Dizem que as procuraram, mas as garotas já não estavam mais por ali. Deviam
mesmo ser lindas ou será que a guerra as fez assim? Uma sombra de ternura, um
pequeno punhado de carinho é o bastante para o apego desses soldados. Longe de
suas famílias buscam atenção, afago... Uma pequena ponta de relacionamento em
qualquer canto e se agarram a ele como se fosse de uma vida inteira.
Aos poucos a
estação vai se esvaziando e poucos são os que viajam à tarde em tempos de
guerra.
O trem vem
anunciando sua chegada ao longe e com muita dificuldade me levanto, me apoiando
na parede ao lado de minhas malas. Alguns outros soldados se apressam em
enfileirar-se, resquício da vida militar que estão abandonando aos poucos.
Vagarosamente ele se aproxima do ponto de embarque e demora alguns minutos até
parar completamente. Os ex-combatentes, como nos outros trens, ocupam os vagões
traseiros, entrando ordeiramente, pois os ferimentos ainda são recentes e evitam
encostar uns nos outros.
Com um pouco
de sorte pego a poltrona da janela. É um tanto desconfortável, mas há muito
tempo, conforto não é bem uma palavra muito usada no meu dia a dia, a não ser
quando vem acompanhada de uma negativa. Olho mais uma vez a estação e o trem
volta a apitar anunciando sua partida.
A meu lado, um
jovem rapaz. Não vejo ferimento algum. Mas prefiro o silêncio. Não quero
conversar. Não agora.
E a estação
vai ficando para trás com suas muitas histórias... Aquela moça também se foi e talvez
amanhã continue lá. Ao certo espera quem não mais virá.[...]
Continua...
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