[...]Sinto sob meus
ombros o peso das vidas daqueles que extirpei deste mundo no matraquear de
minha metralhadora, sob montes verdejantes e nos distantes descampados ressequidos,
enfurnado em trincheiras ou em meio ao verde das matas até então inexploradas.
A cada um que tombou frente ao fogo de minha máquina de morte, uma história:
alegrias e tristezas, sonhos e desilusões, amores e desafetos, encontros e
desencontros. A fumaça, a dor e a angústia a impregnar o ambiente; os dias
inglórios aclamados pelos clérigos do poder, aqueles que vinham a ostentar a
brilhante ideia de enviar os filhos de outros a batalhas das quais jamais sonhariam
tomar parte; o ódio e aquele cheiro de sangue; tudo isso não saia de minha mente.
Aquele fardo que me pesava aos ombros curvava meu espírito e debruçava-se sobre
minha carcaça vazia, da qual não se podia extrair esperança, alegria, ilusões,
ou algum sentimento nobre. Em meio ao fogo cruzado ou às noites de agonizante
silêncio, percorria-me o sangue um misto de tristeza e saudade. Acabassem como
fosse aqueles dias de tortura espiritual, de flagelo e desespero, tinha a
convicção de que nada seria mais que um resquício daquilo que um dia fora. A
guerra me mudara por completo. De um simples sonhador e inocente rapaz, a um
voraz e sanguinário brinquedinho bélico.
Os meses corriam
lentos e os dias pareciam semanas, enquanto as horas, estas se arrastavam e se
desmanchavam suavemente, sem movimentos bruscos ou descompassos, sem demonstrar
qualquer interesse em findarem-se ou mesmo descortinarem-se sem serem contempladas,
deglutidas, absorvidas ao máximo, em suas magníficas e impiedosas existências.
O tempo é inimigo do combatente, levando consigo tudo aquilo que o dá forças: a
vontade de deixar aquelas terras, o sonho de rever os entes queridos, a
esperança de um dia voltar a caminhar descalço sob as areias da praia e a
sorrir frente ao doce olhar de uma criança.
A certa hora
da noite os sons da guerra ao longe me fazem lembrar a infância, quando
estrondos e clarões na escuridão gelada de um mês de novembro não significavam
nada além de trovões e relâmpagos e eram apenas descargas elétricas a rasgar o
céu e, não, descargas de explosivos e aço a rasgar carnes e ossos, a ferir
corpos e almas, a criar viúvas e órfãos. Peço a Deus que nos perdoe.
Hoje há certa
calma no ar e uma brisa vinda do leste traz consigo o cheiro de flores do campo,
enquanto sensações e lembranças são revividas nas mentes e corações dos homens
aqui entrincheirados. Junto ao cheiro de lavanda, trazidas pelos ventos suaves,
chegam notas melodiosas entoadas aqui e ali por pequenos pássaros, indiferentes
às insanidades que aqui praticamos. Graciosos, sobrevoam nossas cabeças como os
anjos que vemos todas as noites em nossos sonhos, nos quais anunciam o esperado
fim dessa maldita guerra, fazendo giros e piruetas, numa pequena diversidade de
cores.
Alguns homens
escrevem cartas enquanto assoviam à sombra de alguma árvore e eu, sentado atrás de uma barricada, descanso meu
braço esquerdo sobre o direito, enquanto este permanece sobre minha ponto
trinta. Tenho os olhos voltados para o horizonte, por sobre as montanhas ao
longe, percorrendo de um canto ao outro do meu campo de visão as nuvens que vão
formando desenhos variados. Ao meu redor, além do cheiro doce trazido pelos
sopros divinos, o cheiro de poeira e suor, resultado de um calor tropical que
tem me castigado um pouco mais a cada dia. O céu aparece em pequenos espaços
entre as nuvens naquele horizonte, enquanto aqui onde estamos é limpo e
incrivelmente azul. Fico imaginando se nossos inimigos também notam tais
belezas lá embaixo, em meio às árvores, onde se escondem e planejam nos tomar em
batalha. Sinto que a guerra um dia ou outro me levará à completa insanidade[...]
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