quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Fragmento de "Batalhas"



[...]Sinto sob meus ombros o peso das vidas daqueles que extirpei deste mundo no matraquear de minha metralhadora, sob montes verdejantes e nos distantes descampados ressequidos, enfurnado em trincheiras ou em meio ao verde das matas até então inexploradas. 
A cada um que tombou frente ao fogo de minha máquina de morte, uma história: alegrias e tristezas, sonhos e desilusões, amores e desafetos, encontros e desencontros. A fumaça, a dor e a angústia a impregnar o ambiente; os dias inglórios aclamados pelos clérigos do poder, aqueles que vinham a ostentar a brilhante ideia de enviar os filhos de outros a batalhas das quais jamais sonhariam tomar parte; o ódio e aquele cheiro de sangue; tudo isso não saia de minha mente. Aquele fardo que me pesava aos ombros curvava meu espírito e debruçava-se sobre minha carcaça vazia, da qual não se podia extrair esperança, alegria, ilusões, ou algum sentimento nobre. Em meio ao fogo cruzado ou às noites de agonizante silêncio, percorria-me o sangue um misto de tristeza e saudade. Acabassem como fosse aqueles dias de tortura espiritual, de flagelo e desespero, tinha a convicção de que nada seria mais que um resquício daquilo que um dia fora. A guerra me mudara por completo. De um simples sonhador e inocente rapaz, a um voraz e sanguinário brinquedinho bélico.
Os meses corriam lentos e os dias pareciam semanas, enquanto as horas, estas se arrastavam e se desmanchavam suavemente, sem movimentos bruscos ou descompassos, sem demonstrar qualquer interesse em findarem-se ou mesmo descortinarem-se sem serem contempladas, deglutidas, absorvidas ao máximo, em suas magníficas e impiedosas existências. O tempo é inimigo do combatente, levando consigo tudo aquilo que o dá forças: a vontade de deixar aquelas terras, o sonho de rever os entes queridos, a esperança de um dia voltar a caminhar descalço sob as areias da praia e a sorrir frente ao doce olhar de uma criança.
A certa hora da noite os sons da guerra ao longe me fazem lembrar a infância, quando estrondos e clarões na escuridão gelada de um mês de novembro não significavam nada além de trovões e relâmpagos e eram apenas descargas elétricas a rasgar o céu e, não, descargas de explosivos e aço a rasgar carnes e ossos, a ferir corpos e almas, a criar viúvas e órfãos. Peço a Deus que nos perdoe.
Hoje há certa calma no ar e uma brisa vinda do leste traz consigo o cheiro de flores do campo, enquanto sensações e lembranças são revividas nas mentes e corações dos homens aqui entrincheirados. Junto ao cheiro de lavanda, trazidas pelos ventos suaves, chegam notas melodiosas entoadas aqui e ali por pequenos pássaros, indiferentes às insanidades que aqui praticamos. Graciosos, sobrevoam nossas cabeças como os anjos que vemos todas as noites em nossos sonhos, nos quais anunciam o esperado fim dessa maldita guerra, fazendo giros e piruetas, numa pequena diversidade de cores.
Alguns homens escrevem cartas enquanto assoviam à sombra de alguma árvore e eu, sentado atrás de uma barricada, descanso meu braço esquerdo sobre o direito, enquanto este permanece sobre minha ponto trinta. Tenho os olhos voltados para o horizonte, por sobre as montanhas ao longe, percorrendo de um canto ao outro do meu campo de visão as nuvens que vão formando desenhos variados. Ao meu redor, além do cheiro doce trazido pelos sopros divinos, o cheiro de poeira e suor, resultado de um calor tropical que tem me castigado um pouco mais a cada dia. O céu aparece em pequenos espaços entre as nuvens naquele horizonte, enquanto aqui onde estamos é limpo e incrivelmente azul. Fico imaginando se nossos inimigos também notam tais belezas lá embaixo, em meio às árvores, onde se escondem e planejam nos tomar em batalha. Sinto que a guerra um dia ou outro me levará à completa insanidade[...]

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